A discussão sobre o envolvimento indígena nas produções científicas dentro da universidade, em um contexto invisibilizador

Por Larissa Fernandes, Rafael Delazari e Wellington Barbosa*

Mesmo que, diante da Lei, o Estado seja o principal responsável pela garantia dos direitos dos povos indígenas, o que se vê na prática segue o ritmo contrário. No cotidiano acadêmico a realidade dos indígenas costuma ser de invisibilização, já que as produções acadêmicas mais valorizadas são das áreas de exatas e da saúde, se comparadas as de humanas. Podemos inferir que o desenvolvimento de pesquisas se baseiam em conceitos ocidentais, especificamente oriundo de um modelo científico europeu, ignorando saberes ancestrais de povos originários, cujo protagonismo costuma se limitar à aparição como objeto de estudo.

Ter os povos originários apenas como objeto de estudo traz um efeito colateral distinto: mantém o distanciamento desses povos em relação ao cotidiano acadêmico e, consequentemente, a estereotipação dos saberes de povos minorizados pela sociedade. 

Milenarmente, a universidade não é associada apenas à função de formar profissionais, mas, antes de tudo, a lugar de produção de conhecimento, em todas as áreas do ensino superior. Porém, em busca recente pelas palavras-chave “pesquisa UFMG” na ferramenta Google Notícias, a área que mais apresenta noticiabilidade é a da Saúde. Das primeiras páginas analisadas, quatro notícias sobre pesquisas são da área da Saúde, uma de Engenharia, uma de Ciências Agrárias e apenas duas notícias da área das Humanas, sendo uma da Faculdade de Ciências Econômicas e outra da  área de Comunicação Social.

Encontro de Alunos Pataxós da UFMG (Foto: Foca Lisboa/Divulgação UFMG).

A distribuição entre as notícias é desigual, e o que realmente se visualiza no jornalismo que noticia a pesquisa é uma espécie de “notícia industrial” do conhecimento. Os valores humanitários que ganham a cultura pop não se traduzem quantitativamente de maneira imediata e, do conhecimento produzido pela universidade, fica priorizada majoritariamente a área da saúde, neste exemplo, ou quaisquer outras áreas com menos presença de conceitos abstratos como valores culturais e opressões sociais; ou discutivelmente, mas dificilmente ignorável, ficam priorizadas áreas em que existem interesses econômicos diretos envolvidos.

A invisibilidade que mata

As produções acadêmicas envolvendo as áreas humanas costumam ser invisibilizadas, mesmo que a universidade as promova por meios de projetos como a Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI), iniciativa vinculada à Faculdade de Educação da UFMG (FAE), cujo objetivo é oferecer mais oportunidades às produções acadêmicas feitas pelos povos originários, para que se tenha mais visibilidade para este grupo.

Outro caminho de amparo às produções da área de Humanas envolvendo o contexto indígena são os processos de alteridade, palavra oriunda da Antropologia que significa se colocar no lugar do outro, ou seja, daquele que se busca conhecer; esta alteridade, nos quais os acadêmicos que não têm os saberes inerentes dos povos, buscam a proximidade com tais saberes, sem a interferência de conceitos ocidentalizados. Assim, estes acadêmicos produzem conhecimentos científicos  que dão visibilidade para os saberes desses povos, em um processo de decolonialidade. 

É o caso do artigo “”Foi a Escravidão”: Uma Arqueologia Histórica de Duas Cadeias de Exceção Contra Povos Indígenas em Minas Gerais, Brasil”, do pesquisador (branco) Pedro Pablo Fermín Maguire,  graduado em História pela Universidad Complutense de Madrid e que se mudou para Minas Gerais, em 2017, para cursar doutorado em Antropologia pela UFMG, sobre a história das cadeias de exceção denominadas “cadeias indígenas” do estado. 

Na pesquisa, o autor apresenta um recorte, especificamente entre 1968 e 1979, durante a Ditadura Militar, em uma análise sobre um regime de terror, de trabalhos forçados e de tortura que foi instaurado contra os povos indígenas e operado pela Polícia Militar de Minas Gerais, que prendeu mais de 300 indígenas com extrema violência, no qual esses povos sofreram penalidades por não ter garantias processuais, tipos penais e nem sentenças definidas como o “homem branco”. 

Para isso, o autor utilizou dos depoimentos dos sobreviventes diretos e nos materiais registrados arqueologicamente ainda presentes onde operaram o regime, para assim reconstituir a história desses povos. 

“A existência desse tipo de circunstâncias (regimes de exceção) comprova que os limites que os estados modernos assumiram nas suas atribuições punitivas são uma conquista recente e desigualmente distribuída”, o pesquisador explica. “Sua distribuição segundo contornos raciais mostra uma indefensão muito maior perante arbitrariedades do estado para populações como os povos indígenas e negros”, conclui. 

Ou seja: o desconhecimento de tais acontecimentos gera mais invisibilização, mais violência, através da omissão; a documentação é cada vez mais farta, mas o silêncio se retroalimenta, tanto na história arqueológica quanto nos critérios de noticiabilidade dessas pesquisas pela imprensa. 

Aluna Pataxó (Foto Foca Lisboa – Divulgação/UFMG)

O professor César Guimarães é coordenador da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, programa criado pela universidade com o objetivo de realizar encontros com pensadores para a difusão de saberes das culturas afrodescendentes, indígenas e populares.

Ele ressalta que a produção acadêmica, seja no contexto da pesquisa feita por intelectuais indígenas, ou por intelectuais não indígenas, mas despidos da ocidentalidade, traz, além da reparação histórica em reconhecer os saberes, uma oportunidade de ruptura dos saberes institucionalizados nestes estudos, destacando uma nova forma de pensar, trazida pelos povos indígenas.

“Com seus próprios modos de pensar, sua cosmologia. Então não se trata de tomar esses saberes simplesmente assim como um objeto a ser investigado pela universidade, pelos seus modos já estabelecidos de conhecimento, pelo contrário, o importante é a mudança, a transformação, a ruptura que essas questões trarão pra própria maneira da universidade produzir do conhecimento”, afirma César.

Podemos citar como um exemplo deste processo de transformação da ciência produzida no ambiente acadêmico a publicação do artigo “Que indígenas moram no livro de Matemática?”, produzido pela pesquisadora indígena Ruriana Braz. Ruriana é pertencente à comunidade Pataxó, originário da aldeia Barra Velha, que se localiza no município de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, e sua produção consiste na aplicação dos saberes de sua comunidade nos processos matemáticos, como geometria e álgebra, e, com isto, fazer com que informações científicas possam ser reconhecidas nesses contextos, principalmente no aprendizado básico de crianças.

“É importante que nossos estudantes indígenas possam pegar um livro didático de matemática e se verem ali, ou poder ver a cultura de outro povo parente sendo contada por eles através desses livros. O verdadeiro valor da matemática é compensado para aqueles que olham e enxergam além da sua volta ou da sua cultura”, afirma a autora no livro.

Para Ruriana, a presença de indígenas na produção de conhecimento é fundamental para legitimar as informações sobre as realidades e direito dos povos e territórios originários. No final, ela conclui: “usar a escola, sala de aula, ou seja, a educação para combater o preconceito, o racismo, a xenofobia e todos os tipos de violências e crimes existentes em nossas vidas”. 

Formação de alunos na FIEI (Divulgação/FIEI UFMG).

Consequências danosas

Um exemplo que demonstra o que a falta de visibilidade das produção acadêmicas que abarcam questões sociais, sobre um viés não europeu, pode acarretar está presente em um fato que ocorreu nas últimas semanas de maio de 2023, quando os usuários das redes sociais e o Ministério da Igualdade Racial tomaram conhecimento do jogo “Simulador de Escravidão”, então disponível na Play Store do Google

No aplicativo, o usuário era um “proprietário de escravos” que podia castigar pessoas negras escravizadas ao longo do jogo. Depois de toda repercussão, o Ministério da Igualdade Racial informou, então, que entrara em contato com o Google para elaborar, de forma conjunta, um filtro que não permitiria a disseminação de discursos de ódio, intolerância e racismo.

São inúmeros registros de intervenções semelhantes a esta, que propõem ações com o intuito de retificar visões preconceituosas cristalizadas no buscador de notícias. Conforme noticiado na grande mídia, em 2015, dois publicitários brasileiros criaram um projeto que confrontava o “preenchimento automático” do Google em buscas de nacionalidades diferentes, como, por exemplo, “Brasileiros são irritantes” ou “Haitianos são sujos”, recebendo contribuições de ativistas de todo o mundo. Esses novos valores humanitários, que em 2023 voltaram a direcionar ações governamentais no Brasil, mostram uma transformação na sociedade, que tende a não aceitar mais esses tipos de valores preconceituosos. 

Então é de suma importância a valorização desses conhecimentos, mas primeiro eles precisam nascer de um local para chegar a difundir por meios das redes chegando à massa, e o ambiente da faculdade é propício para a produção destes conhecimentos que dão visibilidade a questões de igualdade racial, feminismo, preservação de povos originários e a desconstrução de opressões generalizadas. 

É claro que o tecido da realidade é complexo e, se esses valores questionam um determinado status quo, é de se imaginar que encontrem, também, resistência para se estabelecerem. Entretanto, é clara a crescente presença dessas ideias na consciência cidadã mundial e na cultura pop, o que tem, como contrapartida, a ascensão da extrema-direita em nível global.


* Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação: Jornalismo sobre Ciência e Decolonialidade”, coordenado por Antonio Fausto Jr., Jornalista e doutorando do PPGCOM/UFMG