Dossiê: Transporte

Conversamos com uma cobradora para entender um pouca mais sobre como é ser mulher nesta profissão.

 

O ônibus quebrou na rua Santa Catarina e eu e mais 16 passageiros fomos obrigados a descer e esperar por um outro.

A maior parte deles parecia irritada, enquanto alguns, pelo menos uns cinco, descontaram verbalmente a sua frustração na cobradora de ônibus. Faltava cerca de uma hora para o expediente de Sara terminar, às 14h do sábado, mas agora ela dependeria do sorte para saber que horas ia chegar em casa. “Os carros dessa linha são velhos”, ela me explicou. “A culpa não é minha, nem do motorista. A gente não sabe da hora que o ônibus vai estragar.”

 

Mulheres cobradoras de onibus - Laura Ribeiro

 

No entanto, era apenas Sara quem escutava as reclamações das pessoas do lado de fora. O motorista estava ocupado dentro do ônibus, na sombra, conversando com a central da empresa sobre o veículo quebrado.

Em dez minutos, avistamos outro carro da mesma linha passando pela rua e, com Sara à frente, tentamos pará-lo. Ele passou direto.

Pensei que um motim de passageiros ia se virar contra a cobradora mas, felizmente, Sara conseguiu controlar os que ficaram exaltados. Ela manteve a calma e explicou que o próximo veículo estava a caminho e iria parar. “Mas esse ônibus nunca chega”, reclamou um. Ela permaneceu quieta, esperando ao nosso lado.

Às 12:55, entramos no ônibus.

 

As cobradoras

 

Sara tem 45 anos e pega serviço todas as manhãs, às 5h45, de segunda à domingo. Ela nunca quis, de fato, trabalhar como cobradora. A oportunidade apareceu há oito anos, quando se cansou de trabalhar como empregada doméstica. Em menos de semana, ela conseguiu, com a ajuda das irmãs que também trabalham em coletivos, um emprego em uma empresa de transporte de BH. Não é nenhuma profissão dos sonhos, mas ela diz que está confortável. “Tem carteira assinada e eu posso aposentar.”

Os motivos que fizeram Sara permanecer no emprego por quase uma década podem ser os mesmos que explicam o recente crescimento do número de mulheres trabalhando no transporte público, principalmente nos cargos de cobrador. A estimativa do STTR-BH (Sindicato de Trabalhadores do Transporte Rodoviário de Belo Horizonte) é de que cerca de 40% dos 19 mil trabalhadores do transporte público seja representado por mulheres. É possível que a estimativa seja até maior para as 3,8 mil pessoas que atuam como agentes de bordo, o que chamamos de cobrador.

O diretor do sindicato, Carlos Henrique Marques, conta que era raro encontrar mulheres ocupando as poltronas das roletas. “A falta de mão de obra para trabalhar no sistema, de certa forma, gerou a oportunidade de emprego para muitas mulheres que, inclusive, eram donas de casa.” Ele também aponta que a clara expansão da mulher no mercado de trabalho mineiro é perceptível nas empresas de transporte, mas que, mesmo assim, “ter os dois sexos trabalhando nos coletivos não passa de uma situação casual, de necessidade de mão de obra.”

Existe, porém, outro motivo que pode explicar a recorrência das cobradoras e, infelizmente, têm a ver com o agravo das condições desse tipo trabalho em Belo Horizonte.

Sara, por exemplo, faz 10 horas de serviço por dia, com poucos intervalos. A empresa que a contratou não exige o cumprimento dessa carga horária, mas o salário de R$ 780, valor sem as horas extras, não satisfaz as necessidades financeiras da cobradora. Sara é casada e tem dois filhos, um já adulto e outro adolescente. Ela contou que, mesmo não passando por dificuldades financeiras e tendo o apoio do marido, um chefe de cozinha, a quantidade de tempo que gasta dentro de um ônibus é grande para pouco retorno.

“Ocorreu uma defasagem salarial nos últimos 10 anos”, comenta Carlos. O sindicato também registrou uma série de outros fatores que contribuíram para a evasão dos trabalhadores e a escassez de mão de obra, como o trânsito caótico, a violência e as condições de trabalho impróprias impostas pelas empresas.

Além de aguentar as horas de serviço, Sara tem outras obrigações a cumprir. Ela cuida da casa e dos filhos e, mesmo com a maior parte do trabalho doméstico nas mãos, Sara recebe alguma a ajuda do marido em casa. Essa situação é diferente para outras mulheres que estão na mesma profissão em BH.

Kátia, de 40 anos, está no cargo há 4 meses. Ela recebe pensão alimentícia do ex-marido, mas cuida da casa e dos filhos sozinha. A cobradora conta que também se sente coagida a manter horas extras diárias para receber um melhor contracheque. Ou seja, o desgaste ultrapassa as altas horas de serviço e o retorno financeiro. Ela ainda vive com um certo medo de perder o emprego ou até o direito ao abono salarial, caso falte ao trabalho, mesmo apresentando atestado. “Parece que nós, a qualquer momento, somos substituíveis.”

 

Mulheres  no mercado de trabalho

 

Existiria, portanto, uma diferença entre as condições por que passam as mulheres e homens nesse tipo de trabalho?

O gênero é bastante relevante para analisar as especificidades da parte da população economicamente ativa no Brasil. De acordo com uma pesquisa feita em 18 mil domicílios de Minas Gerais, no ano de 2011, pela Fundação João Pinheiro, as mulheres gastam em afazeres domésticos um total de 23,6 horas por semana, enquanto os homens se dedicam apenas 9,8 horas a essas atividades pelo mesmo tempo. Para a região metropolitana de BH, a diferença é um pouco menor: 9,9 horas semanais para os homens e 17,8 horas para as mulheres.

Grande parte das mineiras também usa bastante do tempo para cuidar dos filhos. O levantamento revelou que em 51,8% das famílias, a mãe é unicamente responsável pelo acompanhamento das atividades das crianças ou adolescentes matriculados na escola. O número referente a pais que assumem esse papel é ínfimo: apenas 3%.

 

Responsabilidades iguais

 

Enquanto as condições são especiais, as responsabilidades do cobrador e da cobradora são as mesmas. Eles precisam administrar com cuidado o sistema de tarifas, controlar os passageiros e cobrar passagem dos que não pagam. Uma das recorrentes explicações que essas funcionárias escutam de seus patrões sobre a presença feminina é de que o atendimento da mulher é mais atencioso. Para essas empresas, a empregada seria mais cuidadosa que o empregado, sendo mais útil na hora de administrar os rendimentos de um ônibus.

Essas generalizações de comportamento podem até ser válidas em determinadas situações. Porém, elas não parecem conseguir explicar o crescimento das mulheres no setor de serviços.

Ainda de acordo com a pesquisa da Fundação João Pinheiro, as mulheres estão mais inseridas no mercado de trabalho por investirem mais em qualificação. Entre as pessoas economicamente ativas com ensino superior completo, em Minas, 59,1% são mulheres. Já o percentual de mulheres com ensino médio é maior que dos homens: 32,1% das mineiras possuem essa instrução, enquanto para os homens esse percentual é de 25,9%.

É possível, portanto, que o crescimento da mulher nessa profissão em Belo Horizonte possa ser uma representação do crescimento da própria mulher no mercado de trabalho. No entanto, não parece existir muita preocupação por parte das empresas de transporte de entender as diferentes necessidades entre os sexos.

“Se houvesse essa preocupação dos empresários [em relação ao gênero], as condições de trabalho seriam adaptadas às particularidades do sexo feminino,” afirma Carlos. “Para se ter uma ideia, até hoje o sindicato luta pela instalação de banheiros masculino e feminino nos pontos.”

Afonso Sepulveda

Nenhuma das cobradoras de ônibus quis se identificar. Mesmo assim, elas não tiveram receio de me contar sobre as dificuldades de se trabalhar no transporte público. A maioria delas é feita de mães acima de 40 anos que não têm ensino superior e desejam ser independentes financeiramente.