Dossiê: Outro Olhar

Uma crônica sobre a primeira visita ao Cemitério do Bonfim e ostentação post mortem.

Por Ivanir Ignacchitti

 

Créditos: 29/10/2009. Euler Junior/EM/D.A Press

Cemitério do Bonfim: um “museu a céu aberto” (Créditos: 29/10/2009. Euler Junior/EM/D.A Press)

 

Eram 7 horas da manhã: meu despertador tocou. Apesar de ter o costume de levantar às 5h30, particularmente neste dia 21 de abril, um feriado na segunda, acordei morto de cansaço. Fazer o quê? Meu trabalho me exigia isso. Levantei e me arrumei prontamente. Estava esperando um amigo que vinha me buscar para visitarmos um local no qual esperávamos não ficar por muito tempo.

Devo dizer que também não estava ansioso. Era um lugar que minha avó sempre me proibiu de ir. Um lugar com o qual alguém jovem como eu não deveria se envolver muito. Quaisquer pessoas conhecidas por lá demandariam muito do meu emocional. Mas isso era na minha cidade natal – a situação aqui é outra.

O lugar para o qual vou não me poderia ser menos familiar. E mesmo já tendo ouvido falar de algumas pessoas de lá, nada sentia pelas mesmas. Por essa falta de familiaridade mesmo que pedi para meu amigo, que conhece o local, me levar até lá. No caminho, ele me dizia sobre como trabalhava próximo do lugar. A situação precária das ruas, que via através das janelas, e seus relatos um tanto negativos, se misturavam em uma espécie de sinfonia do desmazelo.

Ao chegar, ele me alertou: “Ó, descansar neste local é muito caro, por isso você só vai ver pessoas importantes por aqui. Ouvi dizer que há bastante corrupção também”. Antes de irmos ao local de fato, o cemitério do Bonfim, fomos ao serviço de velório. Lá, encontramos oito salinhas com espaço para os mortos e seus entes queridos. O primeiro em que passamos possuía uma família. Os cumprimentamos em pêsames, mas resguardamos demasiada atenção.

Todos os outros estavam vazios: cruzes, placas apagadas para o nome dos mortos, altares para os caixões. Ao lado desses locais, existiam salas de descanso com sofás rasgados. Em apenas um deles, uma pessoa deitada, prostrada, parecendo cansada demais para se manter viva. Preferimos passar direto para evitar quaisquer constrangimentos.

Decidimos conhecer as outras instalações também. Uma lanchonete sem clientes estava aos fundos do prédio, após o hall principal. Poucos gatos e cachorros também atravessavam por entre as flores. Aproveitando o feriado da forma que podiam, os funcionários da administração assistiam a notícias na TV e conversavam sobre futebol.

Quando perguntados sobre detalhes específicos do cemitério, recorriam aos cartazes espalhados pelas paredes. Cartazes esses que detalhavam quais os locais mais procurados, falavam sobre visitas guiadas e enalteciam o caráter histórico do local. O cemitério do Bonfim era, de acordo com eles, um “museu a céu aberto”, com obras de arte e cuja construção guardaria mistérios que deveria atrair curiosos.

Nos dirigimos então ao cemitério. Meu amigo, que havia trabalhado como agente de zoonoses em BH, me avisou que o local é cheio de escorpiões e um famoso foco de dengue. Lá, realmente vimos muitas poças de água, várias tumbas quebradas e mosquitos por todo lado. Não encontramos nenhum escorpião, o que me aliviou um pouco.

Andando pelo local, as pedras utilizadas nos túmulos chamaram a nossa atenção. As mais bem conservadas pareciam caríssimas. Além disso, os túmulos demonstravam um detalhado trabalho arquitetônico: bustos, estátuas, imagens religiosas, capelas e jazigos que mais pareciam casas. “Que bonito! Vários anjinhos! Devem ter ido todos pro céu!”, disse meu amigo, em tom irônico.

Nos túmulos, vários nomes de pessoas que reconhecia por terem relação com ruas de Belo Horizonte: Mascarenhas, Olegário Maciel, Raul Soares, entre outros. Aqui em Belo Horizonte, é só na área nobre que ligam tanto para o sobrenome, como se estivessem presos ao passado. E o mesmo acontece no interior.

Por ser feriado, o local estava vazio. Apenas uma mulher chorosa passava por entre os túmulos. Achamos melhor não incomodá-la. Decidimos ir para o outro lado do cemitério, que ainda não havia sido explorado. Lá, em meio a vários outros túmulos, encontramos um que, apesar de ter passado despercebido a princípio, nos chamou muita atenção quando estávamos nos preparando para ir embora.

Esse túmulo, ao contrário dos outros, era muito natural. Em meio às pedras e à ostentação artificial generalizada, parecia feito de madeira. Uma cama de troncos coberta por uma pequena vegetação. Sua cruz, torta, se mesclava bem com o resto do túmulo e sua aparência não era de acabada, mas de algo etéreo. Era um jardim em meio a uma selva de pedras. Natureza em meio à ostentação mórbida.