Administração do estádio tem aumentado prioridade para eventos diversos em detrimento do esporte

Por Catharina Tomazzi, Fabrizio Fraga, Guilherme Novais, Maria Luiza Saenger e Luísa Lélis*

O Estádio Governador Magalhães Pinto (popularmente conhecido como Mineirão) vem sendo alvo de disputas e diversos conflitos nos últimos anos. Historicamente voltado para o futebol, o espaço tem visto sua prioridade em sediar o esporte diminuir, enquanto que a realização de shows e eventos musicais têm sido cada vez mais constantes no espaço. Em meio a polêmicas e críticas, vindas especialmente do meio esportivo, a reportagem tenta entender os motivos das escolhas administrativas do Mineirão pela Minas Arena (consórcio de empresas que administram o Mineirão), e traçar um panorama sobre o papel cultural do estádio na cidade de Belo Horizonte. 

Estádio do Mineirão após a reinauguração em 2013 (foto: Agberto Guimarães)

O futebol foi a principal atividade realizada no Estádio Governador Magalhães Pinto durante muitos anos, atraindo grandes públicos e proporcionando momentos históricos. No entanto, de 2010 a 2013, o Mineirão passou por uma ampla reforma para sediar a Copa do Mundo de 2014. As melhorias incluíram padrões internacionais, como gramado de alta qualidade, infraestrutura modernizada, acessibilidade e segurança aprimoradas. Durante a Copa, a capacidade foi aumentada para 62.160 espectadores, mas após o evento, foi reduzida para 51.600 espectadores sob justificativa de melhorar a experiência dos torcedores e permitir a realização de diversos eventos.

O Mineirão sempre comportou eventos para além dos jogos de futebol, como o Axé Brasil, maior festival de axé fechado que já aconteceu no país entre os anos de 1999 e 2014, e que muitas vezes teve o Mineirão como sede, ou a Feira dos Carros, evento de exposição de automóveis que acontecia na área externa do estádio e era tradição até a reforma para a Copa do Mundo. 

Mineirão em dia de jogo em 1965, ano da inauguração (SkyscraperCity)

Porém, com a infraestrutura renovada e uma maior capacidade, o estádio se tornou um local ideal para receber grandes espetáculos e atrações internacionais. Artistas famosos, tanto nacionais quanto internacionais, passaram a incluir o Mineirão em suas turnês e apresentações. 

Essa “nova identidade” do Mineirão já pôde ser percebida desde o seu fechamento para reforma em 2010, quando o último evento recebido foi o show do grupo mineiro Skank. Na reinauguração em 2013, o primeiro evento foi um jogo de futebol: um clássico mineiro disputado entre Atlético-MG e Cruzeiro no dia 3 de fevereiro do ano, um domingo. Uma semana depois, o estádio recebeu o cantor britânico Elton John, já indicando ali que o espaço ganharia cada vez mais o status de arena multiuso. Outros exemplos de artistas internacionais que se apresentaram no Mineirão foram Roger Waters, que fez um show em 2018 e retornará em novembro de 2023, Beyoncé, em agosto de 2014, o beatle Paul McCartney em outubro de 2017, Metallica em 2022 e Kiss em 2023. 

Com a pandemia de Covid-19, que teve início em 2020, houve a suspensão de jogos de futebol e competições esportivas por um longo período. Dessa forma, para se manter ativo, o estádio teve que se adaptar e buscar outras formas de utilização. Ainda em um momento de normas de quarentena e isolamento social, o estádio recebeu shows sem público que foram transmitidos em formato de live para todo o Brasil, e alcançaram grandes públicos em redes como o Youtube. Uma das bandas que passaram pelo espaço vazio em tal contexto foi o Skank.

Ainda antes de ser possível ter público em grandes eventos devido às normas de isolamento social por conta da pandemia, o Mineirão voltou a receber jogos de futebol do Atlético-MG e do Cruzeiro, mas com portões fechados. Em 2021, o estádio voltou a receber público e, gradualmente, os eventos musicais e culturais ganharam ainda mais destaque.

Com o ganho de popularidade dos shows e eventos culturais além do futebol no Mineirão, muito têm sido questionadas as prioridades da administração do estádio, liderada pela Minas Arena, gerando assim polêmicas e críticas, especialmente por parte do meio esportivo e de moradores da região da Pampulha.

Conflito de calendário 

Os principais problemas que a administração do Mineirão tem enfrentado com os clubes de futebol estão diretamente relacionados com conflitos de calendário. Tais embates acontecem por conta da quantidade de shows e eventos que têm acontecido no espaço interno do estádio, o que muitas vezes impossibilitam a realização de jogos de futebol do Atlético-MG e do Cruzeiro no campo, sendo alguns desses jogos importantes e decisivos para a temporada das equipes.

Ilustração do projeto arquitetônico da Esplanada do Novo Mineirão, feito pela empresa Gustavo Penna, que realizou as mudanças (Reprodução/Gustavo Penna Arquitetos)

Um exemplo recente notável ocorreu no dia 3 de junho de 2023, com a mudança do clássico mineiro entre Atlético-MG e Cruzeiro para o Estádio Parque do Sabiá, em Uberlândia. Essa mudança foi necessária devido à realização do show de música eletrônica SoTrackBoa no Mineirão. 

Essa situação gerou discussões informais, como no Twitter e em comentários de publicações no Instagram dos clubes, sobre a importância relativa de um clássico de futebol em comparação a um show de música que atende a um público específico, podendo não ser considerado um tipo musical que está no leque cultural de Minas Gerais ou Belo Horizonte.

O clássico mineiro atrai a atenção de torcedores e espectadores de todo o país. Esses jogos costumam ser acompanhados por uma grande audiência televisiva e mobilizam a imprensa e os meios de comunicação. Além disso, os confrontos entre as duas equipes costumam ser um dos mais lucrativos da temporada e que atraem maior público ao estádio.

A mudança de um dos principais eventos culturais e esportivos de Minas Gerais do maior estádio de futebol da cidade gerou mal-estar entre os dirigentes dos clubes e a administração do estádio, além de diversas críticas do público de futebol à Minas Arena.

Lucro e contrato 

O lucro da empresa e os repasses previstos pelo Estado de Minas Gerais à entidade têm sido amplamente questionados. De acordo com o portal Superesportes, até o final de 2022, o Estado mineiro era obrigado a repassar R$ 10 milhões de reais por mês para a empresa. O valor final do repasse era abatido conforme o lucro da Minas Arena, ou seja, quanto maior o lucro da empresa, menor o repasse do Estado.

Foto do Festeja Brasil 2017 que recebeu cerca de 60 mil pessoas (Agencia i7 / Mineirão)

A ideia inicial era de que a Minas Arena pudesse lucrar o suficiente para que o Estado não precisasse repassar nenhuma verba. Entretanto, este cenário nunca se consolidou e os repasses milionários se tornaram rotina. Assim, segundo o Superesportes, a empresa conseguiu manter um lucro constante de R$ 10 milhões de reais por mês de 2013 a 2022, chegando num valor total de mais de R$ 1 bilhão (valores corrigidos pela inflação). Já para o ano de 2023, o jornal Hoje em Dia noticiou que o contrato passou por uma revisão, no qual o pagamento mensal obrigatório do Estado foi diminuído para um valor entre R$ 3 e 4 milhões.

Dessa forma, os benefícios recebidos pela Minas Arena pela forma como o contrato foi firmado têm sido constantemente contestados. Não apenas os clubes de futebol que alegam estar sendo prejudicados argumentam, mas o assunto é frequentemente alvo de debates e questionamentos no âmbito político.

A exemplo disso, foi instaurada em agosto de 2019, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Mineirão para apurar irregularidades, ilegalidades e fraudes na execução do contrato de parceria público-privada, firmado entre o Estado de Minas Gerais e a Minas Arena, para reforma e administração do estádio, em virtude de suposto subfaturamento nas receitas encontradas.

Nesse contexto, o deputado estadual Professor Cleiton (PV), um dos apoiadores da abertura da CPI do Mineirão, considera que o contrato do Governo de Minas com a Minas Arena, administradora do estádio, “já foi quebrado muitas e muitas vezes”. A declaração foi dada em março de 2023, em entrevista à rádio Super 91,7 FM.

Gramado

A qualidade do gramado do Mineirão tem sido uma preocupação evidente devido à realização frequente de shows e eventos no estádio, especialmente durante partidas oficiais do Atlético-MG e do Cruzeiro. Sinais visíveis de desgaste têm sido observados. Essa questão foi abordada por Hulk, do Atlético-MG, em entrevista após o jogo contra o Atlético Paranaense, pela fase de grupos da Copa Libertadores, no dia 23 de maio. 

Durante sua fala, o jogador lamentou: “A gente sabia que iria ser difícil, mas não imaginava que o Mineirão iria estar em tão péssimas condições. Dificulta muito o trabalho, é perigoso.” Além disso, ele mencionou um lance específico em que escorregou e quase machucou o joelho durante a partida, destacando o perigo que o campo representa. 

Foto divulgada pelo Atlético-MG em postagem crítica ao gramado do Mineirão (Divulgação/Atlético-MG)

No dia 28 de abril, o Atlético-MG realizou uma postagem em redes sociais criticando o gramado do Mineirão. O clube enfatizou que as condições do campo trazem “enorme prejuízo” ao time, e que “lamenta a situação criada pela falta de planejamento da Minas Arena, concessionária que administra o Mineirão”. 

Na ocasião, o Atlético-MG precisou alterar o local do confronto contra o Alianza Lima, do Peru, pela Libertadores, para o Independência. Dias antes, havia acontecido o Breve Festival e o show da banda de rock Kiss no Mineirão.

Luan Oliveira, produtor cultural que já participou da produção do evento Samba Prime, que acontece no estádio, entende que a má qualidade do gramado em dias de partidas de futebol tem a ver, principalmente, com a frequência de eventos realizados dentro do estádio, e que a transferência de um número de shows para a esplanada poderia ajudar a solucionar o problema.

“As produções geralmente usam um piso chamado easyfloor por cima da grama. É um paliativo como todo mundo percebe. Mas acredito que isso seja mais sobre a recorrência de eventos do que um mau cuidado em si, o que isso poderia ser resolvido com um cronograma. Por exemplo, ao invés de seis eventos por mês dentro do estádio, três deles poderiam ser na esplanada. Tenho certeza que diminuiria muito os impactos na grama”, opinou o cultural.

Para Filipe Freitas, produtor das festas Esbórnia, Planeta Brasil e Festival SummerTimes,  a organização prévia e diálogo entre a administração do Mineirão e os dirigentes de clubes também é vital para evitar que o esporte seja prejudicado pelas condições e datas de uso dos espaços do estádio.

“Os eventos não atrapalham a atmosfera do futebol, desde que os calendários sejam balanceados, organizados previamente para acomodar os principais jogos e eventos. O próprio público alvo dos eventos abrange quem assiste aos jogos”, indicou o produtor sobre a percepção dos espectadores.

Um dos motivos centrais para a maior frequência de realização de shows e eventos na área interna do Mineirão e não na área externa (esplanada) é que a parte interna comporta mais pessoas, possibilitando que o Mineirão, e consequentemente a cidade de Belo Horizonte, faça espetáculos maiores com grande público, como foi o caso do show de despedida do Skank, dia 26 de março, com público de 50 mil pessoas, e o show da banda internacional de heavy-metal Metallica, que recebeu 60 mil pessoas, em maio do último ano.

Ministério Público e posição de produtores

Em outubro de 2022, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) entrou com uma ação civil pública para suspender shows no Mineirão devido às reclamações dos moradores da região sobre poluição sonora. A ação foi instaurada após um pedido da Associação Comunitária Viver Bandeirantes, que representa os moradores próximos ao estádio. O MPMG solicitou que a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) deixe de conceder licenças para eventos, alegando que as permissões atuais não são suficientes para controlar a poluição sonora gerada pelos eventos realizados no local de forma constante.

Diante da situação, Rodrigo Marques, presidente da Associação Mineira de Eventos e Entretenimento (Amee), se manifestou contra os ataques à realização de eventos no Mineirão, e exaltou o estádio como uma solução para Belo Horizonte:

“O Mineirão hoje não é um problema, mas uma solução para Belo Horizonte, que é a capital brasileira dos bares e do entretenimento. A própria pampulha foi criada para as festas e a alegria. Proibir os eventos seria muito danoso”, disse Rodrigo Marques.

A Justiça negou o pedido do MPMG e não alterou o funcionamento do Mineirão em relação aos shows e eventos no estádio. Nenhum acordo entre os moradores e a administração do Mineirão foi realizado.

Conflito sem fim 

Apesar do consenso de que a organização e o diálogo prévio entre a Minas Arena e os clubes pode ser a solução para os problemas que o futebol enfrenta com o Mineirão, as partes (o governo de Minas Gerais, a Minas Arena, os clubes e os moradores da região) não parecem estar perto de se entenderem. 

A insatisfação dos clubes de futebol e de seus torcedores não parece ter diminuído mesmo com a formação do Comitê Esporte, Lazer e Cultura, que teve o seu primeiro encontro no dia 20 de abril de 2023 e reuniu a Minas Arena com representantes do Atlético-MG, Cruzeiro, América-MG e deputados estaduais.

O Cruzeiro, logo em seguida, no dia 28 de abril, firmou acordo com a Minas Arena para voltar a jogar no estádio. Entretanto, o time já voltou a ter conflito de calendário com os eventos programados para o Mineirão, e precisou sediar o confronto contra o São Paulo, no dia 24 de junho, para o Estádio Independência devido a um evento de música religiosa no gramado do estádio.

Imagem do clássico mineiro ocorrido em Uberlândia por indisponibilidade do Mineirão (Foto: Pedro Souza / Atlético)

No dia 22 de junho, a administração do Mineirão divulgou, em comunicado para a imprensa, que o planejamento tardio dos jogos de futebol afetará a agenda cultural que preencheria a ociosidade do gramado. Na mesma nota, a Minas Arena reforçou a posição do Mineirão como uma arena multiuso e não mencionou alguma prioridade que os jogos de futebol teriam em relação a outros eventos culturais.

Após a divulgação da nota, a Minas Arena confirmou à Rádio Itatiaia que o evento Tardezinha, com data confirmada para 29 de julho, acontecerá no gramado do Gigante da Pampulha. A realização desse show, protagonizado pelo cantor Thiaguinho, impedirá que o confronto entre Atlético-MG e Flamengo, pela 17ª rodada do Campeonato Brasileiro, ocorra no estádio. A diretoria do Galo decidiu por mandar a partida no estádio Independência, do rival América-MG.

Evento Planeta Brasil 2022 no Mineirão (Foto:Agência i7/Mineirão)
Veja a nota completa da Minas Arena

Com a volta do Cruzeiro e o gradativo adiamento do Atlético de mudança de casa, o Mineirão tem feito esforços para readequar sua agenda de eventos programados com os jogos de futebol posteriormente indicados pelos clubes para o estádio. Os eventos de gramado estão sendo remanejados, em diálogo com os produtores, para outros espaços como esplanada e estacionamentos.
O planejamento tardio dos jogos de futebol afetará a agenda cultural que preencheria a ociosidade do gramado. O calendário está em reavaliação e sendo analisado caso a caso, uma vez que a agenda e a formatação dos eventos é muito diversa. O Mineirão, por sua vez, se mantém como uma plataforma multiuso que continuará desenvolvendo a indústria criativa, recebendo jogos de futebol e eventos culturais.

*Reportagem produzida no “Laboratório em Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismo e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira, doutorando do PPGCOM/UFMG