Aos 25 anos da Lei de Cotas para pessoas com deficiência, a Transite percorreu Belo Horizonte para saber como é o mercado de trabalho para quem tem deficiência – e descobriu que a Lei está longe de ser cumprida.
Abaixo está a versão em áudio desta reportagem, comentada pelos repórteres:
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Aos 11 anos de idade, Ronaldo Vilela começou a perder a visão. Era uma retinose pigmentar, doença hereditária que destrói pouco a pouco a retina – parte do olho humano na qual as imagens são formadas. Na pequena Água Boa onde vivia, município de apenas 15 mil habitantes no interior de Minas Gerais, os médicos não o enganaram: ano após ano, Ronaldo enxergaria cada vez menos até se tornar totalmente cego.
Hoje, com 30 anos de idade, Ronaldo vê apenas vultos. Ele concluiu o Ensino Fundamental e o Médio, formou-se como técnico agrícola e deixou Água Boa para trás – onde ainda vivem seus pais e mais cinco irmãos, dois dos quais também sofrem da mesma doença. Ronaldo se mudou para Belo Horizonte, cidade com 170 vezes mais habitantes que sua terra natal. Na capital, ele morou em um internato para cegos, aprendeu a transitar pela cidade grande por conta própria, pega ônibus sozinho, encontra amigos, faz curso pré-vestibular. Mas Ronaldo ainda não conseguiu ter a carteira de trabalho assinada. Nos últimos dois anos, ele participou de quatro entrevistas de emprego, mas não foi contratado em nenhuma delas.
Ronaldo não está só: ele faz parte de um grande grupo de cegos, surdos, paraplégicos e pessoas com outros tipos de deficiência, física ou intelectual, que não conseguem entrar no mercado de trabalho – mesmo que a Lei brasileira assegure esse direito.
A LEI QUE NÃO É CUMPRIDA
Há 25 anos, toda empresa privada brasileira com 100 ou mais empregados é obrigada a contratar uma porcentagem de pessoas com deficiência (PCD). É o que diz a Lei 8.213, de 1991, conhecida como Lei de Cotas para PCD. Entretanto, essas pessoas não ocupam nem metade dos postos que deveriam ser reservados para elas.
O dado é do Ministério do Trabalho: no Brasil, só 37% das vagas estabelecidas pela Lei de Cotas estão preenchidas. Ou seja, mais de 500 mil vagas de emprego que deveriam ser reservadas para PCDs são ocupadas por pessoas que não se enquadram nas cotas.
Em Belo Horizonte, a média é ainda pior. As pessoas com deficiência mal chegam a preencher 29% das vagas previstas por lei nas quase mil empresas que têm a matriz na cidade (dados RAIS CAGED mar 2016). Isso representa mais de 30 mil postos apenas em BH que deveriam ser ocupados por PCDs, mas simplesmente não são.
“‘Eu não posso ter deficiente visual na minha empresa de jeito nenhum’”, é o que a auditora fiscal Patrícia Siqueira, do Ministério do Trabalho, já ouviu de empresários. “Não pode por quê? A Lei é clara. Você tem que colocar pessoas com deficiência em funções da empresa. Se julgar que não pode colocar em uma, coloque em outra”, ela responde.
Patrícia e outros cinco auditores são os responsáveis por fiscalizar o cumprimento da cota para pessoas com deficiência pelas empresas da Região Metropolitana. Em todo o estado de Minas Gerais, a equipe não chega a 20 auditores. O processo é o seguinte: o auditor fiscaliza e, caso a empresa não cumpra a cota, é notificada e tem um prazo para se regularizar. A empresa pode ser notificada várias vezes, mas, se permanecer irregular, a notificação pode evoluir para uma multa. Essa multa é maior se forem muitas as pessoas com deficiência que não estão contratadas. O máximo é de R$ 214 milhões.
A reportagem da Transite obteve com exclusividade uma lista de empresas de Belo Horizonte multadas nos últimos dois anos por não cumprirem a cota de pessoas com deficiência. Nela estão a 2ª maior construtora do Brasil, um dos maiores grupos de ensino do mundo, um dos mais importantes jornais impressos de Minas Gerais e uma das principais montadoras de veículos do estado. Clique aqui e confira.
CONTRATAM-SE SURDOS QUE OUÇAM
“A gente está precisando inserir uma pessoa com deficiência aqui, mas pode ser aquele surdo que ouve. Aquele que converse normalmente”, foi o que um gerente de Recursos Humanos disse a Gilberto Justino, coordenador de Recursos Humanos da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). Segundo Gilberto, é comum receber ligações de recrutadores que preferem pessoas com deficiências mais leves.
Ronaldo confirma que, além dele, conhece outras pessoas com deficiências severas que não passam em entrevistas de emprego. “Entre um cego que tem faculdade e um semianalfabeto que tem uma deficiência leve, eles escolhem o semianalfabeto”, desabafa. Ele também já ouviu de entrevistadores que a empresa não tinha estrutura para recebê-lo, “Eles acham que cego não pode subir escada”, reclama.
Segundo Patrícia, mesmo as empresas que cumprem as cotas e contratam PCDs preferem pessoas com deficiências leves. “Não tenha dúvida. Deficiente visual total é dificílimo [de conseguir emprego]. Também as pessoas com esquizofrenia, as psicoses e as deficiências físicas mais graves. As deficiências mais aceitas são as físicas mais leves e auditivas. Quanto menor o comprometimento, mais atrativa essa pessoa para trabalhar”, afirma.
Patrícia aponta que, apesar de o cumprimento da Lei de Cotas aumentar ano após ano, as pessoas com deficiências mais graves continuam à margem. “O mercado acaba ficando restrito para pessoas com deficiências mais atrativas. As demais a gente chama de invisíveis, pessoas que não são procuradas. Elas só entram se a empresa tiver um projeto mais arrojado de inclusão”, comenta.
O que define se uma pessoa com deficiência pode ser contratada via Lei de Cotas é um laudo de um profissional de saúde do trabalho. Lucas Chalup, médico do trabalho, recebe da empresa a descrição das habilidades necessárias para uma determinada vaga, depois examina os candidatos para descobrir se eles conseguem exercer as atividades exigidas. Ele dá um exemplo de atendimento que fez no dia em que o entrevistamos: “[A candidata] tinha uma deficiência congênita, não tinha o antebraço e nem a mão, e estava indo ocupar um cargo de telefonista. Ela usaria um headset, com a outra mão ela conseguiria atender, então não teria problema”.
VAGA PARA FICAR ATRÁS DA CORTINA
A alta rotatividade é outra característica do mercado de trabalho de pessoas com deficiência. Em 2014, para cada 10 pessoas com deficiência que conseguiram um emprego no Brasil, houve 9 demissões.
Para Patrícia, do MTE, há mais de uma razão que explica essa rotatividade. A principal é uma inclusão mal feita, “Quando a empresa contrata com o único objetivo de cumprir a cota”, explica. Um exemplo são as empresas que buscam contratar PCDs de última hora, apenas para reverter multas, sem se preocupar em quais cargos essas pessoas serão colocadas.
Oswaldo Barbosa, superintendente do Instituto Ester Assumpção (ONG que, dentre outras atividades, auxilia pessoas com deficiência a encontrarem emprego), conta que já recebeu ligações de funcionários de recursos humanos de empresas dizendo: “Nossa, Oswaldo, vou ter fiscalização do MT na sexta-feira. Não consegue 30 [pessoas com deficiência] aí pra mim, não?’, achando que aqui tem um estoque. Às vezes as pessoas ligam com essa lógica de que aqui é uma prateleira”, critica.
Gilberto, da Feneis, também já foi procurado por empresas que tentam evitar a multa do Ministério do Trabalho contratando PCDs sem designar nenhuma função para eles. Certa vez, um recrutador ligou para a Federação pedindo: “Eu preciso colocar um deficiente aqui porque eu vou ser fiscalizada na semana que vem. Você pode mandar um surdo, ele vai ficar ali atrás cortina, não vai fazer nada, só dobrar umas roupinhas na loja”, disse ao telefone. Gilberto afirma que, quando recebe esse tipo de pedido, a Federação não indica pessoas para a vaga.
Como explica Patrícia, contratar pessoas com deficiência sem delegar funções é crime. “Não é regra, mas, infelizmente, não é incomum”, ela diz. Apesar das dificuldades, segundo a auditora, “Quando é uma inclusão bem feita, que passa por uma aprendizagem profissional, por exemplo, a margem de retenção é maior”, afirma.
OUTRO CENÁRIO POSSÍVEL?
“A gente não tem um orçamento específico para a pessoa com deficiência. […] Está inserido no orçamento do Esporte, da Educação, no orçamento da Saúde”, critica Ana Lúcia de Oliveira, da Comissão para Direitos das Pessoas com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Para ela, o cenário poderia ser melhor se o governo unificasse os recursos públicos para PCDs, inclusive o que se arrecada com as multas de empresas que não cumprem as cotas, que atualmente podem ir para o Tesouro Nacional ou para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). “A dificuldade no Brasil é essa: como não tem um orçamento, eles juntam tudo em um só e falam que também tem pessoa com deficiência ali envolvida. […] É interessante também fazer esse fundo da pessoa com deficiência. Por exemplo, pegar essas multas aí, ao invés de ir pro FAT”.
A Transite conversou com a superintendente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD), Teresa Costa d’Amaral. Em relação à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), sancionada em julho de 2015, Teresa comenta: “A LBI trouxe muito mais um detalhamento da legislação do que propriamente conquistas novas. Com raríssimas exceções, a LBI trouxe avanços de mudança de legislação”. Segundo a superintendente do IBDD, não havia necessidade de criar um estatuto em separado para as pessoas com deficiência. Ela acredita que isso, de certa forma, acentua a exclusão delas, ao tratá-las como uma categoria diferente de cidadão brasileiro. Porém, Teresa pondera que um dos avanços da LBI é possibilitar ao Poder Judiciário e à sociedade prestar mais atenção à existência de leis que garantem direitos a pessoas com deficiência.
Na visão de Patrícia, do MTE, a legislação brasileira é suficiente e não precisaria ser enrijecida com novas imposições. “O que a gente precisa é desse novo instrumento [LBI] para avaliação das deficiências para que a gente seja justo com as pessoas que precisam da proteção, mas não se enquadram na Lei [de Cotas]”, comenta. Patrícia também sugere que poderia existir um incentivo fiscal para empresas contratarem PCDs.
Confira, na linha do tempo a seguir, como a legislação brasileira tem incluído, ao longo dos anos, essa parcela da população.
Nos últimos sete anos, tramitaram na Assembleia de Minas Gerais cinco Projetos de Lei para criar selos para o governo e empresas que empreguem pessoas com deficiência. O argumento dos projetos é que os selos incentivariam essas instituições, aumentariam a contratação de PCDs, no caso das empresas, e melhorariam a inclusão dessas pessoas. Entretanto, dos cinco Projetos de Lei criados, três foram arquivados. Os outros dois tramitam anexados no PL 1380/2015. Ele propõe a criação do “Selo Entidade Especial”, que seria destinado a entidades de atendimento a pessoas com deficiência em Minas Gerais. O projeto recebeu parecer da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDDPCD) em junho de 2016 e, desde então, aguarda votação em primeiro turno no Plenário – o que não tem prazo definido para acontecer.
A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Belo Horizonte possui um programa voltado para a formação e inserção da pessoa com deficiência intelectual no mercado de trabalho. O Programa Trabalho, Emprego e Renda promove oficinas que visam introduzir seus participantes a hábitos do trabalho como “rotina, pontualidade, hierarquia, relacionamento interpessoal, responsabilidades, comportamentos adequados, aproximação do desejo ideal e real, higiene”, diz Patrícia Valadares, coordenadora de Ações Integradas da Apae BH. Em julho deste ano, havia 50 vagas para as oficinas.
Apesar de todas as dificuldades, Oswaldo, do Ester Assumpção, percebe avanços no mercado de trabalho para PCDs, mesmo sem a Lei de Cotas ser totalmente cumprida. “Lei é igual cinto de segurança. Quando chegou ao Brasil, ninguém gostava do cinto de segurança. ‘Isso é ruim, incomoda’. Hoje virou um item de segurança para as pessoas. A Lei acabou educando a cultura brasileira”, conclui.
Confira as outras reportagens do dossiê sobre pessoas com deficiência no mercado de trabalho:
- As dificuldades no trabalho das pessoas com deficiência que conseguiram emprego.
- A lista de empresas de BH com as maiores multas por descumprirem a Lei de Cotas.
- A história de Ana Lúcia de Oliveira, que precisou fugir da rebelião em um presídio durante um estágio; de Saulo Rosa, único aluno cego de Medicina da turma; e Lecir Martins, uma bancária com constantes problemas sobre o mobiliário do banco.