Passamos três dias no Espaço Comum Luiz Estrela e agora te contamos como foi.

 

Entre as ruas do Santa Efigênia existe um casarão. Ele já estava ali faz tempo, desde 1913. Foi hospital militar e psiquiátrico infantil, além de escola para crianças com necessidades especiais. Em 1994, foi abandonado, apesar de ter sido tombado como patrimônio histórico dois anos antes. Por quase duas décadas, o prédio ficou ali, sem atenção ou cuidados, até que, em outubro de 2013, como resultado de um esforço coletivo, o casarão foi ocupado e rebatizado: nascia o Espaço Comum Luiz Estrela.

Foi em 2010, junto com o começo do movimento Praia da Estação, que a ideia de ocupar o casarão começou a ser gerada. Porém, só no ano passado, com a força das jornadas de junho e as conversas em assembleias horizontais, que tudo começou a tomar um rumo. O objetivo era converter o casarão em um espaço livre, de formação artística, aberto e autogestionado. Lá seriam oferecidas oficinas de pintura, música e teatro. Após negociações com o governo, os ocupantes obtiveram a liminar que permitia a apropriação do espaço. A condição para isso era que eles conseguissem juntar recursos suficientes e se responsabilizar pelas obras de restauração.

 

Luiz Estrela 1

 

Este ano, a mobilização para a arrecadação da verba começou. Para isso, os colaboradores que participam da gestão decidiram organizar eventos para atrair gente para o espaço, onde seriam vendidas comidas e bebidas. Todas as segundas-feiras, os colaboradores passaram a se reunir, para receber as propostas de apresentações e organizar uma agenda. Artistas como cantores, poetas e pintores se ofereciam para ministrar oficinas e apresentar espetáculos, a fim de dar visibilidade à causa. Além disso, uma campanha de doações online foi lançada, no site catarse.com, que é uma plataforma de crowdfunding. Até o dia 26 de abril, aproximadamente R$ 52 mil foram arrecadados – a meta para a realização da primeira etapa das reformas (revitalizacão do escoramento do casarão, que é basicamente o que o mantém em pé) era R$ 45 mil.

Luiz Otávio da Silva, mais conhecido como Luiz Estrela, vivia na rua e era amigo de muitos, principalmente dos artistas e dos habitantes do centro da cidade de Belo Horizonte. Poeta, escrevia seus pensamentos em folhas soltas, numa espécie de diário desencadernado. Participava das mobilizações artísticas e culturais da cidade, como carnaval de rua, Praia da Estação, Festival de Performance, atrações no Teatro Espanca!, no Nelson Bordello, entre outras.

 

Era ainda um militante da diversidade. Homossexual, o Luiz Estrela era muitos, de muitas histórias, de muitas pessoas e foi covardemente assassinado por espancamento no centro de BH na noite de quarta feira, 26 de junho de 2013. Sua morte brutal não foi investigada. Virou mais uma estatística para o poder público. Nos últimos dois anos, mais de 100 moradores em situação de rua foram assassinados em BH.

 

— Trecho retirado da descrição do projeto do Cartase

Nós visitamos o casarão três vezes. Cada repórter escreveu sobre suas experiências e impressões do espaço e das pessoas que estavam presentes nos eventos. Afinal, como se dá essa ocupação lúdica, que ergue sua voz com poesias e acompanhada de acordes de um violão?

 

Dia 1: o casarão com espaço Comum — Pedro Lucchesi

 

Durante as manhãs de sábado, era realizada uma oficina sobre a história do casarão. Querendo conhecer mais a respeito e já tendo em vista esta matéria, pensei que seria interessante participar. Então, no dia 29 de março, fui até o bairro Santa Efigênia.

Quando cheguei em frente ao endereço, logo vi que era ali o meu destino. Várias estacas apoiavam uma casa bastante antiga, com a tinta toda descascada. Ao lado, a entrada do pátio externo do Espaço Comum. Nesse dia, entendi o porquê da palavra “Comum”. Ela indica uma alternativa para as ideias de público e privado, diz de uma lógica diferente daquela em que o estado ou o mercado ditariam as regras. O Comum, nesse caso, está relacionado a um lugar que é compartilhado e autônomo, construído e mantido a partir da colaboração de uma diversidade de indivíduos, em que o consenso é um dos guias para a elaboração de atividades e para a manutenção do espaço.

 

Luiz Estrela

 

Logo na chegada, algo raro de se ver: dois banheiros químicos instalados para que qualquer um pudesse usar, seja por quem passava pela rua ou por quem estava no Luiz Estrela. No pátio externo, já pude sentir muita receptividade. Quase todos que ali estavam me cumprimentaram quando adentrei o espaço.

Pouco depois, me deparei com uma banca e vários livros expostos. Descobri, então, que a oficina estava cancelada para o lançamento de duas publicações: “Nas ruas”, de Ruddá Ricci e Patrick Arley, e “A multidão foi ao deserto”, de Bruno Cava. Por sorte, os autores participariam de um debate para contar um pouco sobre os livros e também para discutir sobre o uso da cidade, tema bastante caro a muitos dos que costumam ir ao Luiz Estrela.

 

Luiz Estrela 3

 

Algo que me chamou a atenção durante o debate foi a diversidade etária dos que se reuniram debaixo e em volta da tenda que abrigava as pessoas do sol. Só não havia crianças – fora isso, gente velha e nova, que trabalha ou que estuda, ou que trabalha e estuda. Gente aposentada também. Alguns estavam sentados, compartilhavam almofadas colocadas no chão ou em estrados e caixotes de madeira. Outros estavam de pé, todos atentos ao que cada um tinha a dizer. Quem quisesse participar só precisava pedir o microfone e esperar sua vez de ser ouvido e, como faz parte, de ouvir uma opinião semelhante ou contrária.

Dentre os que pediram a vez estavam uma turismóloga, uma mestranda em Comunicação Social da PUC, um senhor integrante da luta antimanicomial, um moço que não quis se identificar (disse que o que aprendeu com esses últimos movimentos de ocupação é que não importa dizer quem é e o que faz), uma professora de arquitetura da UFMG, uma historiadora e um dos atuais ocupantes do Espaço Comum Luiz Estrela.

Antes que o debate acabasse, todos ainda receberam uma flor de papel crepom, feita por um integrante do projeto Manifesto das Flores. Ele estava ali, inclusive, para ensinar como se faz a flor, a quem quisesse.

Luiz Estrela

 

Dia 2: Em uma tarde qualquer, o som da murga — Henrique Jayme

 

Saímos às 14 horas da UFMG em direção ao Espaço Comum Luiz Estrela. Nem eu e nem a Beatriz conhecíamos o lugar. Pegamos um ônibus até o centro e de lá mais um que nos deixaria na esquina da Rua Manaus, onde o casarão nos aguardava. Não sabíamos se encontraríamos pessoas no espaço a qualquer hora que fossemos, então escolhemos o dia e o horário em que aconteceria uma oficina de restauração, uma quinta-feira, às 15 horas. Estávamos à frente do prédio, observando a fachada que nos confirmava a história que sabíamos: sobre o casarão ter sido um prédio público, posteriormente abandonado, e sobre sua reocupação e os eventos culturais que acompanhamos em sua página do Facebook.

Logo na entrada, no portão do pátio externo, letras belíssimas formavam o nome do lugar e, próximo a elas, cartazes colados com informações sobre o prédio, a reforma, a história de Luiz Estrela, os eventos e o financiamento coletivo. Não tivemos tempo para ler tudo – alguns minutos ali e a chuva começou. Não era muito forte, mas tínhamos que encontrar abrigo, e foi assim que entramos. Com o casarão fechado, todos os eventos acontecem no pátio externo, exatamente onde estávamos. Ao caminhar, víamos mais cartazes, esculturas, desenhos e objetos que foram deixados e ali construíam a atmosfera artística do lugar. Vimos um pequeno grupo de pessoas em baixo de uma lona estendida onde pretendíamos nos proteger. “Murga!”, eles diziam, “Murga” eu repeti sem entender enquanto nos convidavam a entrar no pequeno cômodo ao fim do pátio.

 

murga

 

O grupo estava em roda, ensaiando, e nós aprendendo aos poucos a dinâmica da música. Nesse momento, chovia muito, já era impossível sair e nós fomos ficando e ficando… Adorei a música e as letras, principalmente depois de terem nos explicado um pouco sobre o estilo. Nisso, outras pessoas chegaram, algumas para a oficina, algumas para a Murga e algumas para apenas se proteger da chuva. Conversamos com alguns, e aproveitamos o tempo ilhados para bater uns papos. Não ficamos muito mais depois que a chuva começou a diminuir. Nosso plano era voltar quando acontecessem os eventos. Talvez seja pela música, pelo abrigo da chuva, pelo estilo do local ou por todos esses motivos, aquele lugar me pareceu um dos mais confortáveis e aconchegantes que eu já conheci.

 

Dia 3: Uivos Comuns — Beatriz Lobato

 

Sexta-feira, o casarão virou palco para o Sarau Vira-lata. Essa inciativa já ocorre há algum tempo em outras partes de Belo Horizonte (como na Praça do Papa, por exemplo). Funciona assim: fez uma poesia, compôs uma música, toca algum instrumento e quer compartilhar sua arte com mais gente? Basta chegar na roda, escrever seu nome num papel, que é colocado em um chapéu junto a todos os outros nomes. Quando você é sorteado, é só subir no tablado de madeira localizado do centro da roda e fazer sua parte.

 

Luiz Estrela 2

 

Nesse dia, o pátio que é utilizado nos eventos estava enfeitado com luminárias cobertas com tecidos de várias cores, deixando o corredor mal iluminado com nuances de rosa, azul e amarelo. Assim que cheguei, por volta das 19 horas, um rapaz logo na porta já me ofereceu seu CD de rap, produzido por ele mesmo. Percebi que ali também é lugar do artista autônomo que procura um jeito de continuar fazendo o que gosta. Quando entramos, as pessoas ainda estavam dispersas. Ao fundo, o principal organizador do Sarau, Betto Fernandes, arrumava uma mesa com comida, que mais tarde ele anunciou ser um “rango comunitário”. Em um canto, um homem tocava violão, cantando em uma voz suave sobre amor e política. As pessoas se reuniram à sua volta enquanto o Sarau não começava, alguns com cigarro de palha ou latas de cerveja em mãos. Do outro lado, uma moradora de rua estava sentada, um pouco encolhida, e as outras pessoas presentes a chamavam para sentar mais perto de todos. Ela, ainda acanhada, sorria e agradecia, parecendo estar deleitada com o ambiente do Sarau.

Quando Betto anunciou o começo, as pessoas viraram de frente para o tablado-palco e ajeitaram-se em seus lugares. O primeiro nome foi sorteado, um rapaz cantou sua composição de rap, que narrava as dificuldades da vida e como as enfrentou de cabeça erguida, do jeito que a “filosofia do rap” manda. Várias outras pessoas levantaram e apresentaram seus versos e melodias. Um homem com um violoncelo tocou sua adaptação de mantras indianos. Em outro momento, um homem ajoelhado improvisava uma prosa sobre a sociedade contemporânea, que destrói a Mãe Terra. Sua voz se embargava, e as palavras saíam doídas, mas ele continuava portando certa altivez. Após cada apresentação, a plateia aplaudia e soltava uivos, saudação característica do Sarau Vira-Lata.

Beatriz Lobato

Descobriu no Espaço Comum Luiz Estrela novas experiências. Ouviu o som da murga e uivou em um sarau.

Pedro Lucchesi

Espero que mais iniciativas como o Espaço Comum Luiz Estrela surjam em BH.

Henrique Jayme

Com certeza irá mais vezes ao Espaço Comum.