Por Katarina Borges e Marina Lelis

A xenofobia é um fenômeno de violação dos direitos humanos que afeta pessoas em situação de imigração, em territórios diferentes do local onde nasceram. Ela implica em uma rejeição e aversão ao estrangeiro, manifestada por diversas formas de preconceito e violência contra a pessoa considerada não pertencente àquele território, a partir  daqueles que se consideram parte dele. A maneira como a xenofobia afeta os indivíduos imigrantes, no entanto, implica também uma série de outras variantes, para além de simplesmente estar em situação de “estrangeiro” em determinado território — o país ou território de origem, os aspectos raciais e de gênero, questões relacionadas à sexualidade e identidade do imigrante, assim como aspectos linguísticos, terão, necessariamente, influência na maneira como se experimenta (ou não) a xenofobia. Outro fator que pode ser determinante diz respeito à motivação da imigração: uma das condições que podem levar um indivíduo ou grupo a sair de seu país de origem é a busca por segurança — sair de situações de conflito armado, perseguições por motivos religiosos, de raça, gênero, sexualidade, opiniões políticas ou até mesmo por expatriações forçadas. Diferenciadas pela necessidade de uma migração forçada, pessoas refugiadas vivem experiências de xenofobia de uma maneira ainda muito diferente de pessoas que realizam migrações voluntárias. Ou seja: essa experiência está carregada de aspectos que podem intensificar ou reduzir manifestações xenófobas, reproduzindo, muitas vezes, situações de privilégio ou situações de marginalização, a depender das condições.

O que pretendemos, nessa reportagem, não é estabelecer qualquer tipo de generalização em torno da experiência de mulheres imigrantes em territórios estrangeiros. Pelo contrário: a partir de um recorte de gênero, propomos um olhar que se atenta para as particularidades e singularidades de cada uma dessas experiências, demonstrando como diversos aspectos podem influenciar para que ocorram vivências diferentes em relação à  xenofobia, em suas intersecções com o racismo e a misoginia. Para isso, escolhemos conversar com quatro mulheres que estão imigrantes atualmente: duas delas que vieram de outros países para o Brasil, e duas brasileiras que estão vivendo na  Europa. Nós vamos contar um pouco sobre as histórias e experiências de Tânia, Nicole, Laura e Bruna, mulheres muito diferentes, mas que têm em comum o fato de terem saído de seus países de origem para estudar — uma característica que é também determinante na forma como se vivencia a experiência de imigração.


“Eu acho que estou destinada a viver estudando”

Tânia Evelina Samuel Buchir nasceu na província de Nampula, no norte de Moçambique, em 1989, e viveu lá até aos seus dezesseis anos. Perdeu seus pais muito nova — o pai, quando tinha completado apenas treze anos de vida, e a mãe, quando fez seu décimo sexto aniversário. No início de nossa conversa, ela já havia nos alertado que tentaria não se emocionar, porque sua experiência era muito emocionante. E, de fato, nós mesmas nos pegamos com os olhos cheios de água enquanto a ouvíamos contar sua história. Enquanto recordava de sua infância em Nampula, ela nos contou, orgulhosa, que seus pais haviam sido sempre muito amorosos. Apesar de terem estado separados por distâncias físicas durante alguns períodos de sua infância, eles viviam “muito juntos”, nas palavras dela. Tânia contou um pouco sobre seu pai, de quem ela fala com saudade e admiração: mesmo em uma sociedade bastante machista e patriarcal, como ela viria a relatar depois, ele sempre a incentivou a estudar e a ler.

Após a morte precoce de seus pais, Tânia e sua irmã, Thelma Luísa, se mudaram, junto com seu tio, para a província de Niassa, situada no extremo noroeste do país, onde, em 2010, ela iniciaria o curso de Licenciatura em Ensino de Geografia e História, na Universidade Pedagógica do Niassa. Sua vontade naquela época, na verdade, era cursar Direito, mas não havia Universidades em Niassa que oferecessem esse curso, e não era uma possibilidade ir para fazer faculdade em outra província naquele momento. Tânia contou que, em Niassa, a língua local era diferente de sua cidade natal. Ainda que todas as províncias do país tenham o português como primeira língua, cada província tem uma multiplicidade de idiomas locais. Em Nampula, onde nasceu, se falava também a língua local Macua, enquanto em Niassa o idioma Jaua era o que predominava — ela disse que, mesmo tendo vivido bastante tempo por lá, não chegou propriamente a aprender o idioma de forma fluente ao chegar em Niassa, e até mesmo dentro da província existiam algumas outras variações, que marcam, segundo ela, uma forte diferença nas culturas de cada região moçambicana. Em Niassa, Tânia conheceu Jeremias, com quem passou a morar aos 20 anos. Quando entrou na graduação, Tânia estava grávida de seu primeiro filho com ele:  Nkalunda Samuel Jeremias Chindia — cujo nome significa “esperança”. Dois anos depois, Nkalunda veria nascer sua primeira irmã, Verónica Evelina Jeremias Chindia.

Em 2019, seu marido Jeremias, biólogo de formação, passaria para o doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais, para pesquisar sobre neurologia vegetal. Esse acontecimento iria trazer grandes mudanças não só na vida dele, mas também na de Tânia. Os dois viriam para o Brasil em agosto de 2019, enquanto Nkalunda, já com 12 anos, e Verónica, com 10, ficariam em Niassa. Mas Tânia não veio para o Brasil somente para acompanhar o marido: ela viu uma oportunidade de ingressar em um curso de mestrado na mesma universidade que ele. Primeiro, ela havia pensado em tentar entrar no mestrado em Educação — ela já havia trabalhado nessa área em Moçambique. No entanto, chegando aqui, o processo seletivo para esse curso já havia se encerrado. Foi aí que seu marido sugeriu que ela tentasse em Demografia, afinal, havia muito poucos demógrafos em Moçambique. Logo no início do mestrado, Tânia descobriu que estava grávida de sua segunda filha:  Nkailania Tânia Jeremias Chindia nasceria em 5 de janeiro de 2022, em Belo Horizonte — e aí estavam explicados os fofos e suaves sons de bebê por trás da nossa chamada de vídeo.

Fonte: arquivo pessoal da entrevistada

Como foi o processo para entrar no mestrado?

Tânia: É muito complicado, porque o ensino em Moçambique é muito diferente daqui. Nós mulheres temos uma autoestima muito baixa, a gente pensa que não é capaz, a gente pensa que matemática é muito difícil, estatística… E a gente considera os homens mais inteligentes. Então quando meu marido me disse: “Você vai ter que fazer demografia, porque em Moçambique tem poucos demógrafos”, eu achei que eu não fosse conseguir. Eu não dominava tão bem o inglês, então para mim foi muito difícil, tive que estudar muito para o processo seletivo. O primeiro processo seletivo não deu certo. Quando chegou a prova, eu achei que não estava preparada, porque tinha muita coisa sobre a América Latina, que eu também não dominava tão bem. Não deu certo e eu continuei estudando, me matriculei em algumas disciplinas da graduação para me integrar, e então voltei a concorrer e dessa vez deu certo. Depois veio a covid-19- e as aulas passaram a ser online, então foi muito difícil para eu me integrar. Os professores mandavam procurar os dados e eu não sabia nem por onde começar. Alguns colegas tentaram me ajudar, mas ainda foi muito difícil. Mas estou aqui, sobrevivendo.

Como está sendo esse processo de estar fazendo um mestrado e também estar cuidando da sua filha?

Tânia: Eu evitei contar para as pessoas que eu estava grávida,  porque eu queria aprender e eu acho que todos que soubessem que eu estava grávida iam querer me poupar. Então quando ela nasceu eu contei para a minha orientadora que tinha tido minha filha e ela ficou muito surpresa que todo esse tempo eu estava grávida, porque ela não sabia. É muito difícil, mas está dando para conciliar. A gente faz uma escalinha aqui, entre eu e meu marido, revezando os estudos. E está dando para fazer, porque como eu já estou no finalzinho, fico muito aqui em casa escrevendo, então isso ajuda muito. Meu marido achava que eu não ia conseguir, e falava até em trancar a minha matrícula, mas eu continuei achando que conseguiria e continuei com a matrícula. Eu não ia desistir e não ia perder essa oportunidade, eu falava para ele: eu vou conseguir.

Como foi sair de Moçambique?

Tânia: Em Moçambique a sociedade é muito machista, e principalmente o pessoal do centro e sul de Moçambique, que é de onde meu marido é. Quando o meu marido e eu viemos para cá estudar, o pessoal lá da minha cidade não gostou, ficaram me criticando e criticando o meu marido, questionando o porquê dele me trazer para estudar também, dizendo para ele: “Você vai levar sua esposa, ela vai estudar, vai ficar inteligente e vai se separar. Ela tem que ficar aqui, cuidar dos filhos e de casa, para você poder estudar.” Então, isso também foi muito triste para mim. Tem uma cultura lá em Moçambique que a gente chama de ritos de iniciação. Quando as mulheres têm a sua primeira menstruação, elas vão para o rito de iniciação, onde elas são ensinadas a cuidar dos filhos e do marido, porque entende-se que ela já está preparada para casar e ter filhos. Os homens também vão, eles são ensinados a cuidar da sua família. Eu não pude participar, porque meu pai não quis, ele achava muito absurdo. Ele achava que a gente tinha que estudar ao invés de casar cedo, ter algum sonho. Então eu não entrei no rito de iniciação.

Como foi sua graduação em Niassa?

Tânia: Eu acho que estou destinada a viver estudando. Quando eu entrei na graduação eu estava grávida do meu primeiro filho. O ensino lá é completamente diferente daqui, e lá foi muito complicado para mim. Os professores lá eram muito rígidos e não nos consideravam muito, então o aprendizado era muito difícil. Por exemplo, eu tive um professor em uma disciplina de climatologia que não gostava muito que as mulheres falassem, só os homens. Então isso não nos motivava e nós ficávamos muito tristes, não dava muito para dominar a matéria. Vir para cá, vendo os professores carinhosos, explicando, perguntando se a pessoa entendeu, dando tempo para explicar a matéria, foi muito bom. Então por esse motivo eu falo que a minha graduação não foi muito boa, eu não gostei muito. Lá, eu notava que os professores não dominavam muito as matérias e por isso que eles se comportavam assim com a gente, de serem muito rígidos. A gente não podia fazer perguntas, eles ficavam muito nervosos. Eles tinham uma postura de “eu sou o professor e vocês têm que me chamar de doutor. Quem manda aqui sou eu.” E aqui os professores dominam a matéria. E quando eu vim para cá eu tive que começar do zero, tive que estudar mais, aprender mais, para me integrar. Eu tive uma disciplina lá, de geografia da população, em que o professor não explicou completamente nada sobre a pirâmide etária e como interpretar, então eu vim para cá e vi pirâmide etária, vi gráficos e, nossa, foi muito difícil para mim, começar a estudar isso. Foi muito diferente a experiência aqui, falei muito sobre isso com o meu marido, Jeremias, aqui eu tive que começar do zero para aprender. Quando me perguntavam se eu tive alguma disciplina lá relacionada a demografia, minha resposta era de que eu sempre tive, mas eu nunca aprendi de fato nada disso. Lá tive estatística, mas uma estatística completamente básica, muito diferente daqui. E nós, mulheres, na sala falávamos menos, por conta da baixa autoestima. Quando eu cheguei aqui e vi as mulheres participando na sala eu pensei: eu quero ser como essas mulheres, vou falar. No início eu era muito calma, não falava muito, não conseguia interpretar um texto, era muito objetiva na minha fala, mas fui aprendendo e essa diferença foi muito boa para mim.

Tinham poucas mulheres na sua sala de graduação?

Tânia: Pouquíssimas. Moçambique tem um povo muito machista, a visão lá é de que as mulheres têm que ficar em casa e cuidar dos filhos ao invés de estudar. Então além de poucas mulheres na sala, lá também tem poucas mulheres professoras, o que também foi muito diferente para mim aqui, fiquei surpresa com a quantidade de professoras. Essa é mais uma grande diferença de Moçambique, lá eu só tive uma professora, o resto foram todos professores homens. Na universidade que fiz a minha graduação tem muita corrupção e assédio sexual, e ser mulher em Moçambique é muito difícil por conta disso.

Durante a graduação você teve seus dois primeiros filhos. Como foi isso para você?

Tânia: Foi muito difícil. A Universidade lá de Moçambique é um pouco distante, e eu tinha que ir andando, porque lá não tem ônibus. O pessoal que ia de carro me via com aquele barrigão andando, parava para me oferecer carona. Às vezes eu negava, mas às vezes eu aceitava. Foi muito difícil, mas eu consegui. A maioria das mulheres, quando ficam grávidas, desistem de estudar, mas eu não desisti por causa do  meu propósito, que é estudar e trabalhar. E foi isso que me levou a concluir a minha graduação.

E você já começou a escrever a sua dissertação? É sobre o que?

Tânia: Já. Eu vou falar sobre a transição da fecundidade em Moçambique. Eu pretendo comparar os três últimos censos de Moçambique, que são de 1998, 2007 e 2017. A taxa de fecundidade em Moçambique é muito alta. Lá, quando a mulher casa, ela tem que ter filho. Se uma mulher não tiver filhos ela é muito criticada. E ela e o marido são muito julgados e recebem muitas perguntas do porquê de não terem filhos, quando não pretendem ter. A sociedade critica muito. Então é completamente diferente daqui, onde vocês se casam e passam anos casados antes de terem filhos. Em Moçambique é muito diferente, se você se casou, você tem que ter filhos. Se você é uma  mulher de até 25 anos que não tem filhos, a sociedade critica. Então, por isso, eu escolhi falar sobre isso. Eu pretendo comparar a fecundidade com a religião, com o casamento, com a área rural ou urbana, e pretendo comparar a fecundidade nas três regiões de Moçambique – norte, centro e sul.

Como mulher negra moçambicana, como você tem sido afetada pelo racismo e pela xenofobia no Brasil?

Tânia: Nossa é muito difícil. Dentro de casa a realidade é uma, mas quando você sai é completamente diferente. Eu nunca tinha passado por isso, porque em Moçambique a maioria da população é negra. Então quando eu vim para cá eu vi todo mundo se afastando de mim e do meu marido. Eu perguntei para ele o que era isso, e foi quando ele me falou que era racismo, e me explicou. Foi muito pesado para mim e eu até tive depressão, porque eu nunca tinha passado por isso. As pessoas olhando para mim e achando que porque eu sou negra, eu sou pobre e preciso de ajuda. Quando eu saio com a minha filha, as pessoas pensam que eu estou procurando ajuda. Quando estou com ela e o Jeremias, e ele entra em uma farmácia, por exemplo, e eu fico esperando ele, pensam que eu estou lá para pedir ajuda, me oferecem coisas e eu respondo “não, obrigada”. Isso para mim é muito triste, as pessoas pensarem que toda pessoa negra é pobre, às vezes eu penso que prefiro voltar para Moçambique por conta disso. Outra coisa que eu notei aqui é que as pessoas acham que eu e o Jeremias somos do Haiti. Sempre nos perguntam se nós somos haitianos. Eu fui pesquisar e descobri que muitos haitianos vêm para trabalhar muitas vezes em obras, então as pessoas assumem que as pessoas negras imigrantes são haitianos que vieram para trabalhar em obras. Conversei até sobre isso com um colega, que também é africano e me disse que ele é sempre confundido com haitiano.

Como é isso dentro da universidade?

Tânia: Na universidade é completamente diferente, eu não noto muito isso. Os colegas conversam comigo, me apoiam, procuram saber mais sobre Moçambique. Eles me dão muita força, me motivam muito, isso é muito bom para mim. Nunca tive problemas com isso na universidade. Mas uma coisa que eu notei é que quando eu pego o ônibus interno, as pessoas brancas não sentam do meu lado. Só pessoas negras se sentam do meu lado, mas pessoas brancas não. Só isso que eu notei.

Vocês pretendem voltar para Moçambique? Você pensa em fazer doutorado aqui?

Tânia: Eu e meu marido terminamos o mestrado e doutorado juntos, no início do ano que vem. Eu particularmente não queria continuar, porque achei o curso um pouco difícil, mas conversando com um dos meus colegas eles me fizeram ver que seria muito bom eu continuar com um doutorado. Eu já fiz algumas disciplinas obrigatórias, então eu posso fazer o doutorado em dois ou três anos, então seria muito legal. Então eu pretendo continuar com o doutorado no ano que vem. Eu e meu marido vamos voltar para Moçambique e vou tentar concorrer de lá, vamos ver se vai dar certo. Vou tentar de novo para a UFMG e depois voltar para cá.


 “Quando eu tive minha primeira aula de filosofia na Universidade, foi como abrir meu cérebro”

Filha de Marina Cueto, professora de língua espanhola, e Nicolás Aponte, engenheiro químico — ambos da província de La Altagracia, onde fica a famosa Punta Cana, na República Dominicana —, Nicole Estefany Aponte Cueto tem 28 anos, e desde muito nova foi alguém com planos de vida muito bem traçados para si mesma. Interessada na maneira como se aplicam os cálculos para chegar a resultados que ajudem a compreender determinados cenários e situações, e não exatamente por uma paixão por matemática, ela cursou graduação em Estatística na Universidade Autônoma de Santo Domingo (Universidad Autónoma de Santo Domingo – UASD), a única universidade pública da República Dominicana, localizada na cidade onde nasceu. Lá, foi dirigente estudantil e presidente da Associação dos Estudantes de Estatística.

Durante a graduação, Nicole trabalhou na área de Estatística, e já pensava no mestrado que faria dali a alguns anos. Se formou em 2018 e, após dois anos trabalhando, começou a participar de processos seletivos para bolsas de estudo no exterior, oferecidas pelo governo de seu país. Após algumas tentativas frustradas — uma delas apenas por ter se esquecido de enviar um dos documentos necessários para aprovação de sua inscrição —, ela decidiu aplicar para o Mestrado em Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), instigada por professores que já haviam passado um período por lá, e pelo seu crescente interesse pela maneira como os cálculos eram utilizados para investigar comportamentos demográficos.

Foi assim que ela entrou para o mestrado na UFMG, com início previsto para o primeiro semestre de 2021 — quando o Brasil vivia um de seus grandes picos de infecção da pandemia do novo coronavírus. O cenário pandêmico tornou as coisas um pouco mais complicadas do que seriam normalmente: apesar de ter passado por todo o processo de validação de seu visto de estudante para poder vir para o Brasil, o baixo nível de vacinação e alto nível de contaminação por covid-19 no país fez com que a universidade recomendasse a Nicole, e a outros estudantes do exterior, que aguardassem a melhora dessa situação antes de sair de seus países. Como a situação na República Dominicana estava melhor do que no Brasil, ela decidiu seguir a recomendação da Universidade — mas isso trouxe alguns problemas na sua vida por lá.

Quando passou para o mestrado, Nicole deixou de trabalhar, tendo em vista que passaria a receber uma bolsa da UFMG. No entanto, por questões burocráticas, ela só conseguiria recebê-la, de fato, quando viesse para o Brasil, já que precisaria, necessariamente, abrir uma conta no Banco do Brasil para que isso acontecesse — o que se mostrou impossível de se fazer à distância. Após muitas tentativas falhas de resolver esse problema com a universidade, ela teve, então, que voltar a morar na casa de seus pais, cursando uma parte do mestrado a distância. Apesar de tudo isso, ela conseguiu vir para o Brasil em janeiro de 2022, e desde então está aqui cursando o mestrado em Demografia, no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG. Conversamos um pouco com ela sobre sua vida na República Dominicana, sua pesquisa de mestrado e sobre sua experiência como mulher negra dominicana no Brasil.

Fonte: arquivo pessoal da entrevistada

 Como foi sua experiência na graduação na Universidade Autônoma de Santo Domingo, e como está sendo agora no mestrado na UFMG?

Nicole: Eu gostei muito de estudar na Universidade de Santo Domingo. Eu acho que foi um momento muito importante da minha vida, porque eu sempre estudei em escola privada e católica e, por isso, ir para uma universidade pública foi muito chocante. Quando eu tive minha primeira aula de filosofia na Universidade, foi como abrir meu cérebro. Coisas novas, diferentes da vida como eu conhecia. Foi muito importante na minha formação. A vida política dentro da universidade é contrária ao que se vê pelo país — um país conservador, de direita, muito católico, muito religioso… Estar na universidade é o contrário disso. Lá é como o centro da democracia do país, e por isso eu gostei muito de estar lá e não ter estudado em uma universidade privada, em que as pessoas pagam, assistem às aulas e sabem que em quatros anos vão se formar. Na universidade pública é diferente, tudo que acontece no país se reflete na universidade. Se há coisas injustas com as pessoas mais pobres ou mais vulneráveis, todas as manifestações acontecem na universidade, e ter esse contato, para mim, foi o mais importante — lutar pela justiça, pelo que é melhor para todo mundo, e encontrar um lugar onde eu poderia aprender mais, além de explorar tudo isso. Mas eu comecei a trabalhar com dezenove anos, então eu trabalhava e estudava e eu acho que isso limitou de certa forma a minha experiência, porque eu não tinha tantas horas para ficar na universidade. Agora que eu estou aqui, eu consigo comparar um pouco os dois países. Eu sempre falo que a República Dominicana é o Brasil de cinquenta anos atrás — pensando em o quanto é conservador, como funcionam as regras, as leis… Aqui, o contato com os professores é muito diferente, muito mais livre, mais direto. Lá os professores estão sempre acima e você está aqui abaixo [gesto com a mão]. Até as regras de como você tem que se vestir para assistir às aulas, são bastante diferentes. Lá, você não pode ir com uma blusa sem manga, por exemplo, você seria impedida de assistir aula assim. Isso não faz sentido nenhum porque lá faz muito mais calor do que aqui, e no final de contas o que você veste ou como você se expressa fisicamente não tem nada a ver com o que você tem na sua cabeça. Eu acho que aqui essa experiência é muito boa. Ver como funciona a universidade com liberdade, experimentar, viver e se expressar como você é, sem limitações. É legal também ver o quanto aqui a universidade é importante para o país e estou gostando muito dessa experiência. Acho que vai me ajudar a seguir me formando e aprendendo, e ver como eu quero que sejam as coisas. Quando eu acabar de estudar aqui no Brasil, eu vou voltar para a República Dominicana e quero ser professora da universidade. Aqui, estou aprendendo como eu quero que sejam as minhas aulas, como eu entendo que deve funcionar a universidade.

Agora que eu estou aqui, eu consigo comparar um pouco os dois países. Eu sempre falo que a República Dominicana é o Brasil de cinquenta anos atrás

A sua dissertação de mestrado está sendo em espanhol ou em português?

Nicole: Está sendo em espanhol, porque o programa dá oportunidade depois de escrever em vários idiomas — português, inglês, espanhol, acho que italiano… eles são muito abertos em relação a isso na Universidade. Até trabalhos práticos durante as disciplinas dava para fazer em espanhol. Mas eu sempre fazia em português, porque ficava com medo dos professores não entenderem totalmente o que eu queria dizer e não me avaliassem por isso.

Você é uma mulher negra, vinda de um país que passou por um processo de colonização europeia, assim como o Brasil, e que teve uma história marcada por intervenções militares, além de ter passado por um período ditatorial. Ainda que o Brasil compartilhe desse lugar com a República Dominicana — bem diferente dos países europeus e dos Estados Unidos, por exemplo —, isso não necessariamente se traduz em alguma forma de proximidade ou receptividade entre as populações desses países. Você poderia falar um pouco sobre como é estar aqui como uma mulher negra e imigrante dominicana, considerando as camadas de misoginia e de racismo que marcam a sociedade brasileira e também a xenofobia?

Nicole: Até agora a minha experiência não tem sido ruim. Eu acho que isso tem a ver com o fato de que, até eu falar, eu consigo passar por brasileira, e muitas dessas questões de xenofobia e racismo têm a ver com a sua aparência e se você parece de fora. Até agora, pela minha experiência, fisicamente eu não pareço de fora, só quando eu falo é que as pessoas percebem. Então minha experiência tem sido muito boa. Apesar de que, às vezes, quando estou caminhando ou fazendo exercício fora de casa, tem pessoas que ficam olhando.

E como é essa situação na Universidade?

Nicole: Eu tive uma experiência nas aulas da demografia que eu acho que foi xenofobia, por causa do idioma. Eu e minhas colegas somos acostumadas a falar em espanhol, entre a gente e com os professores, e estávamos fazendo uma disciplina de fecundidade em que tínhamos que escolher um país e apresentar sobre a fecundidade nesse país. No seminário, eu tinha escolhido falar sobre Cuba e, porque em Cuba se fala espanhol, eu decidi apresentar em espanhol — e a professora disse que não teria problema. Mas aí, no grupo do WhatsApp com os colegas, começou a rolar uma fofoca, porque uma menina ficou incomodada quando falamos em espanhol, porque ela não entende o espanhol totalmente. Ela disse que, se fosse assim, se tivesse escolhido Alemanha deveria apresentar em alemão, se tivesse escolhido Itália deveria apresentar em italiano… Ela tentou fazer uma piada, mas não era piada, ela estava só criticando o fato de estarmos falando em espanhol. E já tinha acontecido outra coisa com ela também. Ela perguntou para a minha amiga Kary, que costuma falar em espanhol nas aulas mais frequentemente do que eu, se, quando veio para cá, ela não sabia que no Brasil se fala português. E, nesse momento, a gente achava que ela era nossa amiga, que ela era uma pessoa melhor, mas desde que ela começou a fazer esses comentários a gente se distanciou dela e levamos o caso para o colegiado da demografia.

E o colegiado tomou alguma medida em relação a essa situação?

Nicole: Eles estão inteirados desse comportamento  e acho que falaram com ela. Ela também tentou pedir desculpas pelo WhatsApp, porque percebeu que nós ficamos incomodadas e alguns colegas falaram para ela que o que ela escreveu não foi bom. Então ela me escreveu, pedindo desculpas se eu fiquei incomodada e dizendo que sabia que eu sou uma pessoa perfeccionista e que queria de mim respeito pelo Brasil, me incluir na cultura e que eu falasse português. Mas eu falei para ela que não falar português não significa que eu não respeito a cultura, respeito é outra coisa. Ela não entendeu e nem pediu desculpas novamente, e nós não temos mais uma relação direta. Esse foi o caso mais notório que aconteceu, mas na vida diária nunca tive problemas. Eu acho também, que ainda que tenha racismo, o Brasil está cinquenta anos adiante da República Dominicana nesse sentido. Eu vejo que aqui as políticas a favor das pessoas pretas, das pessoas indígenas, são totalmente diferentes de lá. A República Dominicana faz fronteira com o Haiti, que é um país preto, assumidamente preto — na República Dominicana, as pessoas não se assumem como pretas, e isso também faz muito mal para as cidades e como elas se desenvolvem. Dá para ver a diferença entre os países em relação ao respeito e às diferenças criadas estruturalmente pela sociedade.

Você falou sobre as questões de racismo, misoginia e xenofobia na República Dominicana. Você pode falar um pouco mais sobre isso?

Nicole: É muito diferente. Já começa no fato de as pessoas não se assumirem como pretas. Lá o maior problema é a xenofobia contra o Haiti, porque lá eu acho que mesmo você sendo da América Latina, enquanto você for branco, você está no lugar de privilégio, e no país você já é recebido diferente. E eu acho que isso é muito marcado na República Dominicana. Existem políticas migratórias diferentes para os haitianos, que vêm de um país mais pobre e vulnerável, e para a Venezuela, porque os venezuelanos são, em geral, menos pretos, e por isso são recebidos de um jeito completamente diferente: dá para ver a diferença entre o recebimento dos venezuelanos e dos haitianos. Os haitianos são recebidos como refugiados políticos e econômicos, porque eles saem do Haiti por causa da situação do país. A República Dominicana continua fazendo políticas para deportar, por exemplo, mulheres haitianas grávidas, que estão só buscando atendimento num hospital público. Eles tiraram mulheres dos hospitais e levaram para o outro lado da fronteira, de volta para o Haiti, sem saber a condição dela nem nada. Tem até crianças que nasceram na República Dominicana, filhos de haitianos, que são dominicanos — o único país que eles conhecem é a República Dominicana, é onde eles moram, crescem, estudam —, mas que como os pais deles não têm documentação, os filhos também não têm, e eles são deportados para o Haiti sem nem conhecerem o país. E quando você compara com os venezuelanos, eles são recebidos como refugiados, são bem tratados, não são deportados do país, eles não ficam desprotegidos. Então lá eu acho que existem políticas xenofóbicas e racistas, e acho que é porque o país não se reconhece como um país preto.

Como você vê essa situação no Brasil?

Nicole: Eu acho que aqui no Brasil, quando se compara, vocês têm reconhecimento. Eu visitei Salvador aqui na Bahia, e para mim, a magia de Salvador está no fato de ser um povo que se reconhece como preto, e isso faz toda a diferença. Se reconhecer,  respeitar a cultura e entender o passado é muito importante, para poder se desenvolver no futuro e para ter melhorias para a população. E ainda existindo esse racismo e a xenofobia — que eu acho que é muito mais forte lá —, ainda que na República Dominicana tenha isso, eu como preta não sou ameaçada por ser preta. Eu não vejo isso lá, assassinatos por causa disso, como acontece no Brasil.  Ainda assim, eu acho que os dois países estão em estágios diferentes, tem coisas boas e ruins dos dois lados, mas acho que a República Dominicana ainda tem muito para aprender com o Brasil em questão de política e auto-reconhecimento. Não é minha experiência, mas eu conheço uma colega da demografia que é do Moçambique, e eu sei que aqui ela já teve mais experiências de racismo do que eu. Talvez por isso que eu falei, eu acho que eu pareço mais brasileira do que ela. E, também, sendo da América Latina, talvez o meu choque cultural não seja tão grande quanto o dela, que veio do continente africano.


“Viver sem medo é sem dúvida nenhuma uma das coisas que mais me marca, eu me sinto extremamente segura e respeitada como mulher.”

Apaixonada por Direitos Humanos, Laura Varella concluiu há 2 meses seu mestrado em Direito Internacional na cidade de Genebra, na Suíça, conhecida mundialmente por ser uma das principais sedes da Organização das Nações Unidas. Hoje aos 30 anos, Laura nos conta que saiu da casa dos pais com 17 anos para estudar e se formou em Direito pela UNESP — Universidade Estadual Paulista — em 2015. Filha de fazendeiros do interior mineiro, ela viveu sua infância e juventude no interior de São Paulo, mas sempre se identificou como alguém da cidade grande. Desde pequena demonstrava interesse em aprender outros idiomas e sonhava em viver fora do Brasil, portanto, não foi uma surpresa para a família quando ela contou que estava indo estudar na Europa.

Depois de 3 anos enviando inúmeras aplicações para mestrados na Inglaterra e na Suíça — e sendo aceita na maioria — ela havia recebido recomendações de inúmeras pessoas sobre o programa de Direitos Humanos na Inglaterra e tinha preferência pelo país sede da organização para a qual ela trabalhava na época, porém a universidade não oferecia bolsas de estudo e, como para muitos estudantes brasileiros, morar na Europa sem uma bolsa não era uma possibilidade. Em 2020, seu terceiro ano aplicando para o mestrado, Laura recebeu a bolsa que a possibilitou fazer as malas e seguir seu sonho. O mestrado, específico para pessoas com formação em Direito, chama-se LLM em Direito Internacional, tem duração de um ano e permite que cada aluno escolha uma área para se aprofundar, no caso de Laura, a escolha era certa: Direitos Humanos.

 Hoje, ainda em Genebra, ela trabalha em uma organização que atua com os temas de paz e segurança a partir de uma perspectiva de gênero, e não tem planos de voltar a morar no Brasil, porém está aberta para a possibilidade de viver em outros países mundo afora.

                       

Fonte: arquivo pessoal da entrevistada

Você poderia falar sobre a sua ida para Genebra, em relação à sua  experiência de pesquisa e atuação profissional?

Laura: Eu amei ter vindo para Genebra. Como eu sempre quis muito estudar fora, eu tinha uma série de expectativas, mas eu me formei em 2015 e fiquei fora da Universidade, trabalhando, até o início do meu mestrado — em setembro de 2021 — então eu também estava me preparando para ser uma experiência muito diferente. No Brasil, eu trabalhava com liberdade de expressão e achava muito interessante, mas eu também gostava de um tema muito diferente que eu via poucas pessoas engajadas, que é o Desarmamento e Controle de Armas. Então comecei a estudar o impacto de drones em guerras, o uso de inteligência artificial, a relação entre armas e tecnologia e principalmente os desafios e questões éticas, morais e de direitos humanos. Eu sempre admirei muito uma organização suíça que tratava dessa temática a partir de uma perspectiva de gênero e logo antes da minha vinda, quando eu estava buscando maneiras de pagar os 50% do programa que a bolsa não cobria e o meu custo de vida aqui, eu vi que eles divulgaram uma vaga de 6 meses para consultores. Mesmo sendo um trabalho integral, eu decidi concorrer à vaga e quando fui selecionada, consegui negociar para trabalhar por meio período e conciliar com o mestrado. Eu pude trabalhar lá como consultora até dezembro e foi uma experiência incrível, pela primeira vez na minha vida eu trabalhei com algo que eu era realmente apaixonada — até esse momento, trabalho para mim sempre esteve relacionado a necessidade de ganhar dinheiro — mas dessa vez eu trabalhei por prazer, eu gostava dos temas e me identifiquei muito com a organização, fui à ONU várias vezes, fiz discursos em nome da organização e tive experiências incríveis, foi sensacional. Três meses depois, eu estava procurando outros trabalhos — afinal eu queria continuar aqui — e minhas antigas colegas me procuraram porque havia sido aberta uma vaga na equipe e elas queriam que eu voltasse. Eu fiquei muito feliz.

Quais foram as diferenças que você encontrou no mestrado? Elas corresponderam às expectativas que você comentou?

Laura: Aqui na Europa as graduações são mais curtas e as pessoas fazem o mestrado logo em seguida, então é muito comum que elas façam esses programas bem jovens. Eu imaginava que os meus colegas seriam mais novos do que eu, mas eu ainda me surpreendi — a média da minha sala era de vinte e dois anos e eu cheguei aqui com vinte e nove — a diferença foi maior do que eu imaginava. Além disso, diferente do Brasil, aqui os alunos fazem o ciclo completo de estudos antes de ter alguma experiência profissional, eles não fazem estágios durante os cursos. Eu estagiei desde o meu primeiro ano na faculdade e tive experiências no mercado de trabalho, para mim essas foram as primeiras grandes diferenças. Meus colegas estavam em um momento de vida completamente diferente, sem nenhuma vivência profissional, eles só tinham estudado enquanto eu já tinha trabalhado com direitos humanos por três anos — isso foi um choque, principalmente para me incluir e me enturmar.

A questão socioeconômica definitivamente também me chamou muita atenção. Esse programa é muito caro, até comparado a outros na Europa, então mesmo sendo muito diverso — apenas uma pessoa era da Suíça, todos as outras eram da América Latina, África, Ásia, de outros lugares na Europa, da Nova Zelândia e Austrália — ainda eram pessoas que vinham de uma trajetória muito privilegiada, eu era a única bolsista. E eu trabalhei durante o LLM, porque eu precisava me manter em Genebra, mas esses programas não são pensados para alunos que trabalham, a carga de leitura é muito alta, são muitas avaliações e provas, muitas aulas, eu vivia uma rotina muito corrida.

Como foi conciliar o trabalho, agora em período integral, com a conclusão do seu mestrado? Qual foi o tema da sua dissertação?

Laura: Eu me formei em setembro de 2022, mas só tive aulas até abril, em maio foram as provas, e de junho a agosto escrevi a minha dissertação. Então quando comecei a trabalhar, em maio, nas primeiras semanas foi uma loucura, mas quando eu consegui me dedicar somente à dissertação, a rotina do trabalho até me ajudou. Minha dissertação foi no formato de um paper, como um artigo acadêmico e eu escolhi um tema relacionado ao que eu estava trabalhando, então foi ótimo porque eu aproveitava minhas experiências no trabalho para escrever o artigo. O tema foi o uso de armas explosivas — bombas — em áreas populosas, é bem complexo e no direito não existe uma proibição sobre o uso de bombas em cidades, existe uma série de regras, mas é muito comum que em algumas “brechas” civis sejam atingidos diretamente. Eu escrevi meu artigo sobre isso, observando e vivenciando através da minha organização movimentos internacionais e a construção de documentos muito importantes relacionados diretamente ao tema.

Como foram as suas experiências profissionais e acadêmicas no Brasil?

Laura: Eu entrei na UNESP, no campus de Franca, em 2010. Naquele momento, eu não tinha passado na minha primeira opção, que era a USP e durante muitos anos senti que eu tinha falhado. Eu queria estar em São Paulo porque eu já gostava da temática de direitos humanos e direito internacional e no interior eu não via oportunidades para estagiar ou para conhecer professores que trabalhavam nessa área, ou mesmo outros estudantes que tinham os mesmos interesses. Mas nesse mesmo período, morando em uma república, eu fiz amigas para o resto da vida — em casa eu era extremamente feliz, mas na universidade eu era extremamente frustrada. Durante a minha graduação então, eu fiz um intercâmbio internacional e estudei por seis meses na França, e ao invés de voltar para a UNESP, eu fiz um intercâmbio nacional e estudei na USP. Eu percebi então, que a questão nunca foi a universidade em si, mas estar na cidade de São Paulo e ter mais oportunidades, que foi o que acabou acontecendo.

Em São Paulo, eu trabalhei em um escritório de advocacia, mas depois de dois anos eu fui procurar emprego no terceiro setor, para trabalhar com a temática que eu sempre quis. Trabalhei em uma ONG que tem a sua sede na Inglaterra e aborda a liberdade de expressão que se chama Artigo Dezenove — e foi durante os meus três anos lá que eu decidi tentar um mestrado no exterior.

Sobre estar em Genebra que, como você disse, é uma cidade com muitos imigrantes e de todo o mundo como uma mulher brasileira imigrante, você vê algum impacto direto do seu gênero ou do país de onde você vem na sua vivência?

Laura: Em um jantar com o pessoal do mestrado, três meninas da Índia estavam cozinhando uma sopa e eu estava junto com elas na cozinha, dando palpites e conversando. Na Índia é comum usar bastante tempero e em um determinado momento uma delas falou: “Gente, eu estou com medo de estar muito apimentado. Vamos chamar uma pessoa branca para experimentar”, exatamente assim — white, foi a palavra em inglês que elas usaram. Como eu estava lá com elas, eu imaginei que eu seria a pessoa a ser consultada, mas elas foram até o outro cômodo pedir a opinião da nossa colega dinamarquesa. Naquele momento eu fiquei muito surpresa, porque eu sempre tive muito claro para mim que eu sou branca e por conta disso eu tenho uma série de privilégios no Brasil, mas ali eu não era. Para os meus colegas eu era considerada latina e isso gerou em mim uma série de questões, inclusive sobre a minha identidade — me perguntei muitas vezes o que aquilo significava, o que é ser latina e qual é a minha relação com a América Latina. Elas perceberam a minha confusão e se corrigiram, dizendo que queriam chamar algum europeu, mas eu achei muito interessante ver como as questões de raça dependem também do ambiente em que você está.

Especificamente sobre ser mulher, a minha experiência aqui tem sido muito boa, até hoje eu passei por uma única situação ruim. Um senhor me pediu informação na rua e eu respondi com as orientações, então ele perguntou de onde eu era e quando eu falei: “Do Brasil”, a reação dele foi me chamar de linda e começar a dar em cima de mim. Me pegou totalmente de surpresa e eu fiquei desnorteada porque eu estava há um ano aqui em Genebra e sempre fui respeitada, tinha esquecido completamente o que era esse tipo de assédio.

Quais são, para você, as maiores diferenças entre sua vida no Brasil e na Suíça?

Laura: A questão da segurança é o que mais me marca. No Brasil, por exemplo, quando eu morava em São Paulo, eu não andava à noite e, quando eu saía, tinha uma série de regras para seguir, eu tinha muito medo de andar sozinha à noite e com razão — quase todos que eu conheço em São Paulo já foram assaltados. Essa sensação de viver sempre com medo, em alerta, aqui não existe mais. É até engraçado o quão rápido você se acostuma a viver bem. Quando eu comecei a andar à noite sozinha sem ter medo, eu não percebi que eu estava fazendo isso e depois de uns seis meses, jantando com as minhas amigas, elas me fizeram essa mesma pergunta, eu parei e pensei, e minha resposta foi: “Nossa, eu ando à noite na rua e nunca reparei nisso”. Viver sem medo é sem dúvida nenhuma uma das coisas que mais me marca, eu me sinto extremamente segura e respeitada como mulher.

Você contou que já teve outras experiências em países para além do Brasil e da Suíça, como foram essas experiências?

Laura: Foram experiências muito diversas e muito diferentes da minha vivência aqui em Genebra. Eu fiz meu intercâmbio na França em 2014 e há 8 anos eu era uma pessoa muito diferente. Eu me lembro de sentir muito medo. Eu morava em um bairro predominantemente árabe e de maioria muçulmana, eles eram uma comunidade extremamente isolada e os meus vizinhos não queriam conversar comigo, eu me sentia extremamente incomodada com os olhares dos homens. Hoje eu tenho uma visão completamente diferente sobre isso e eu acho que pode ter sido um desconforto e um certo preconceito da minha parte na época — aqui eu tenho muitas amigas muçulmanas, hoje eu vejo a comunidade com outros olhos e aprendi muito mais sobre a religião — e na França, o preconceito que essas mulheres sofriam por usar hijab era muito maior do que qualquer preconceito que eu posso já ter sofrido na minha vida.

No início desse ano eu fui tirar minha cidadania na Itália e foi, mais uma vez, uma experiência completamente diferente. Eu fiquei em uma casa com outros onze brasileiros fazendo a mesma coisa que eu, todos tinham vindo do Brasil para tirar a cidadania italiana e viver na Europa, mas mesmo assim, a diferença era gritante. Todos estavam ali pretendendo trabalhar com qualquer profissão que conseguissem, como babás, faxineiras, pedreiros, e conversando com eles eu percebi que existia uma diferença muito grande em termos de vivência, expectativas e medos. Medos esses que eu nunca senti, e mesmo no mesmo lugar de imigrantes brasileiros, eu me vi numa posição muito privilegiada.

Mas também na Itália eu vivi o único episódio de xenofobia que eu já sofri. Eu estava em uma cidade bem interior da Itália, eu fui no restaurante e pedi um almoço e eles se recusaram a me servir, me falaram que o almoço tinha acabado enquanto eu via todo mundo nas mesas ao redor sendo servidos e comendo. Na hora eu não percebi que eles não queriam me atender, eu achei que realmente podia ter acabado, então perguntei se teria alguma outra coisa, porque era o único restaurante do local, e a pessoa que estava atendendo trouxe um sanduíche para mim. Quando eu voltei para a casa com os outros brasileiros, comentei que havia acontecido uma coisa estranha e  eles me disseram que vários deles já tinham sido recusados naquele mesmo restaurante e que lá eles não gostam de brasileiros e são realmente xenofóbicos. Foi a única vez que eu sofri com isso, em uma cidade bem tradicional do interior italiano, extremamente conservadora, mas mesmo assim foi uma situação extremamente desagradável.

Como tem sido a sua vida em Genebra, após o término do mestrado?

Laura: Eu sinto que finalmente agora eu tenho tempo livre, como antes eu estava trabalhando enquanto eu estudava, foi muito difícil, por exemplo, criar um senso de comunidade, fazer amigos e conhecer pessoas aqui, porque eu não tinha tempo. Quando eu me formei, tive que sair da residência estudantil e comecei a procurar apartamento. Depois de uma busca que parecia eterna, hoje eu divido meu apartamento com uma colega estadunidense que está em Genebra há 3 anos, ela me apresentou os amigos dela e eu percebo que ela valoriza muito essa questão de amizade por ela também ser imigrante e querer construir uma rede aqui. Uma particularidade de Genebra é que 40% das pessoas que moram são imigrantes — são pessoas que vêm do mundo todo morar aqui, então todos estão buscando formar essas novas conexões e amizades — o que tem seu lado facilitador. Por outro lado, é tudo muito transitório, já que as pessoas vêm para estudar ou trabalhar e ficam aqui por três anos no máximo. Além disso, socializar em um idioma que não é a sua língua materna é um desafio diário.

Em relação à cidade, eu gosto muito da sua beleza natural, moro perto do lago, gosto de caminhar no parque e chego no meu trabalho em 15 minutos, sem dúvidas eu tenho uma qualidade de vida incomparável aqui. Eu não sei se eu vou morar aqui o resto da minha vida, mas acredito que pelo menos nos próximos cinco anos sim, quando eu trouxer minha gata que está no Brasil com a minha mãe minha vida vai estar completa. Eu sou muito feliz em Genebra.


“As dinâmicas de classe e de raça que são presentes no Brasil são muito visíveis aqui também, elas refletem no nosso acesso.”

Bruna Silva nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, se graduou pela PUC-Rio em Relações Internacionais no ano de 2018 e, logo após a sua formatura, decidiu tentar a vida fora do Brasil. Ela trabalhou em Londres e Dublin como au pair — cuidando dos filhos de uma família anfitriã e recebendo em troca acomodação, refeições e remuneração — até receber uma oportunidade de estágio em Genebra. Entre suas duas passagens pela Suíça, ela retornou à Londres em dezembro de 2019, porém poucos meses depois, devido à crise mundial de saúde decorrente da pandemia do novo coronavírus, teve de voltar ao Brasil.

Morando desde agosto de 2021 em Genebra e aos 27 anos, Bruna hoje faz um mestrado em Antropologia e Sociologia no Graduate Institute — instituição de ensino suíça que recebe financiamento público e privado no país e tem uma parceria com a PUC-Rio. Sua pesquisa tem como temática o policiamento preditivo, tecnologias digitais e estratégias de policiamento no Brasil, e como isso afeta as abordagens racistas da polícia, especificamente no Rio de Janeiro.

Desde a sua primeira passagem pela Europa, Bruna já fazia planos para continuar vivendo fora do Brasil e nos disse que, mesmo dependendo de inúmeras questões jurídicas e burocráticas para garantir sua continuidade na Suíça após a sua formatura, ela pretende continuar morando na pacata Genebra, apesar de também estar aberta a ir para outros lugares. Em relação a essa característica da cidade, Bruna demonstra um sentimento oscilante: “é um amor e desamor constante” — como ela nos explica. A cidade impõe uma rotina completamente diferente da que ela viveu anteriormente, em cidades como o Rio de Janeiro e Londres.

Para além de sua trajetória acadêmica, conversamos com a Bruna sobre a vida no continente europeu — como ela mesma citou — “enquanto imigrante que não tem o passaporte vermelho”, ou seja, alguém que não tem a cidadania europeia, trazendo os recortes  e impactos de gênero, classe, raça e seu país de origem na sua experiência por lá.

O que você tem achado de viver em Genebra?

Bruna: Eu não vejo Genebra como uma cidade muito diversa, comparando com as outras cidades nas quais eu vivi. A vida aqui é muito difícil para quem está à margem da proteção social suíça, que beneficia majoritariamente os suíços e talvez outros europeus. Quem está fora desse grupo muito privilegiado se depara com uma série de questões, relacionadas a políticas públicas mas também burocráticas, que dificultam um pouco a nossa vida enquanto imigrantes latino-americanos, e o custo de vida é muito proibitivo para todos que não necessariamente recebem salários suíços, como estudantes e estagiários.

Uma das coisas que me marca muito nessa cidade é o modo como o protestantismo aparece de uma maneira muito secular aqui. A lógica dessa ética protestante em relação ao trabalho é algo com o qual eu sempre me deparo. Para eles, o trabalho é dignificante e edificante de um modo que faz com que todo o resto se mova em torno disso. Em compensação, as proteções e as leis trabalhistas são bem mais rígidas, o trabalho é muito mais bem remunerado e o salário mínimo na Suíça é muito acima da média. Mas toda a rotina da cidade é planejada a partir dessa ótica, de que as pessoas têm que estar bem conservadas e bem preservadas para executar o seu trabalho e gerar lucro. Em Genebra isso é algo muito aparente, mas não sei se se aplica ao restante da Suíça, mas é uma rotina extremamente sufocante.

Como está sendo sua experiência no Graduate Institute?

Bruna: Um dos meus maiores choques desde o início do meu mestrado aqui foi perceber que não só as pessoas não tinham acesso a determinados autores, conhecimentos e perspectivas, mas quando elas tinham, era muito superficial. Eu percebi que as demandas das universidades brasileiras são infinitamente mais complexas do que nas universidades daqui, principalmente em relação às expectativas dos professores enquanto aquilo que você está produzindo em aula e com relação à maneira que você engaja com os textos, eu senti uma cobrança acadêmica muito maior na minha graduação, com certeza. Uma cultura europeia muito forte é das pessoas saírem muito novas de graduações mais curtas, de três ou no máximo quatro anos, e logo em seguida já entrarem no mestrado. Então você se depara com várias pessoas que não só têm tem uma realidade completamente diferente da sua, mas que têm uma experiência muito fechada, muito protegida do mundo — essas pessoas não vão engajar nos debates da mesma forma que você, elas não vão ter sido expostas aos mesmos autores, às mesmas teorias, aos mesmas pensamentos. No Brasil, é uma demanda quase intrínseca ao mestrado acadêmico de que você está formando um pesquisador e o rigor é muito maior, aqui essa demanda não existe, as pessoas só querem um diploma que vá servir para algo em sua vida profissional.

Pessoalmente,  enquanto mestranda neste Instituto, que tem uma proposta de mestrado focada para o mundo profissional, eu vejo algumas pessoas aqui muito resistentes a determinadas conversas. Mais uma vez, sabendo que este é um lugar que atrai muitas pessoas do norte global, algumas diferenças são ainda mais ampliadas, além de a instituição não oferecer suporte aos alunos. O próprio prédio, estética e arquitetonicamente, não é um lugar muito convidativo e acolhedor, é inteiro de metal e vidro, na cor cinza, e tem poucos espaços para os alunos congregarem, então todos esses espaços são sempre muito cheios e o nosso senso de identidade e unicidade vai nos escapando.

Dito isso, eu não me arrependo nem um pouco de ter vindo para cá, eu recebi uma bolsa e esse Instituto era uma das minhas primeiras opções. Mesmo tendo experiências boas e ruins — mas majoritariamente boas —, eu estou aprendendo muita coisa e eu acho isso muito precioso.

Como foi a sua graduação no Rio de Janeiro?

Bruna: Meu período na PUC-Rio durante o curso de Relações Internacionais foi muito conturbado.  Eu saí da faculdade me sentindo completamente desmazelada, física e emocionalmente. Foi um período muito marcado pelas questões de classe e, principalmente, a diferença de classe entre eu e os outros alunos. Eu era uma aluna bolsista em meio a pessoas extremamente privilegiadas e que não tinham noção dos seus privilégios. Como eu tinha vindo de escola pública, no começo eu senti muita dificuldade, eu tive que trabalhar dobrado para dar conta das aulas e dos conteúdos, tive que correr atrás de muita coisa. Um exemplo é que eu falava inglês muito bem, mas as outras pessoas falavam inglês, espanhol, francês e alemão, e eu me sentia muito inferior. Ainda, as questões de raça também eram muito aparentes. A PUC-Rio é uma faculdade majoritariamente branca, na época em que eu entrei não existia um coletivo de alunos negros — ele foi instalado pouco tempo depois.  Eventualmente eu fiz uma pesquisa com o Núcleo de Memória da PUC na qual nós tentamos mapear os professores negros da universidade e os resultados foram péssimos, mas não porque deu errado, e sim porque tivemos como resultado um número insignificante. Ao mesmo tempo, eu percebi que nós estávamos expostos a certos debates com muita profundidade desde muito cedo, o que me deu muito mais maturidade para o meu mestrado, inclusive em relação ao tema que eu pesquiso, que é como a tecnologia muda o racismo quando ele é perpetuado por forças policiais do Rio de Janeiro.

Quais são as maiores diferenças entre a Instituição na qual você estuda agora e a sua universidade no Brasil? Existem também semelhanças?

Bruna: Como o Instituto tem uma parceria direta com a PUC-Rio, é fácil apontar algumas semelhanças, como o corpo docente. Aqui na área de relações internacionais tem algumas pessoas que vieram da PUC-Rio, e muitos alunos também. As questões de classe também são muito comuns entre ambas e talvez seja ainda pior aqui, porque as pessoas que têm condições de vir para cá já são pessoas que ocupam posições de muito privilégio no mundo inteiro, e muitas pessoas vêm sem bolsa. Então é muito clara essa diferença, principalmente porque é um país com muita precariedade estudantil e muito caro.

Mas existem muito mais diferenças do que semelhanças, inclusive no nível educacional, como eu citei. A infraestrutura aqui é impecável de uma maneira que eu jamais vi no Brasil, mesmo numa faculdade como a PUC, que era muito boa e muito confortável — aqui é tudo automatizado com uma aparência futurista.

Mas uma das maiores diferenças que eu vejo é em termos de mobilização estudantil. Aqui eu vejo essa mobilização como algo muito performativo, talvez porque no Brasil o ativismo estudantil é algo muito prevalente na cultura universitária, com intuito de mobilização e transformação, tanto para os alunos dentro da faculdade, mas também fora dela, e a impressão que eu tenho aqui é de que não existe um movimento transformador. Mesmo na PUC, que é claramente racista e classista, lá tinham mais alunos negros, que tinham mais possibilidades. Por ser uma faculdade maior, as demandas também eram maiores, era um cenário muito mais radical, enquanto aqui existe um coletivo de alunos negros que não tem nenhuma proposta, ao contrário do coletivo de lá, que tinha iniciativas que iam desde projetos de conscientização em escolas até reuniões semanais com alunos negros e eventos públicos. Eu também percebo que aqui no Instituto, questões de misoginia e racismo não são tratadas como deveriam, mesmo que na PUC também não vivêssemos o cenário ideal, lá eu via os alunos terem mais mecanismos para denunciar e trazer um alarde para situações quando necessário, que aqui eu não vejo.

Quais são as suas impressões sobre o perfil de estudantes do Graduate Institute?

Bruna: Ainda que não seja uma universidade inteiramente branca, é perceptível o quão homogênea ela é. Aqui existe uma comunidade indiana muito grande, e vendo as questões de classe, para uma pessoa indiana chegar até aqui do modo como se dão as questões de classe na Índia, existe uma questão de acesso e privilégio, porque essas pessoas são de uma classe social muito alta. A comunidade de pessoas do Sul global e do sudeste asiático é muito vasta, mas ainda é muito homogênea. Mesmo tendo um grupo grande de estudantes do leste da Ásia, um grupo muito reduzido de pessoas africanas, e muitas pessoas da América Latina, principalmente brasileiros. Eu penso na questão de como a comunidade latino-americana aqui reflete muito as disparidades raciais e sociais no Brasil. No ano em que eu vim eu fui a única pessoa negra vinda do Brasil, eu não sei se teve algum aluno brasileiro negro que entrou esse ano, mas eu posso contar nos dedos quantas pessoas negras estão nas reuniões dos alunos latino-americanos, porque geralmente sou só eu. Dentre outros latino-americanos podemos ver também que são pouquíssimos indígenas, pouquíssimos negros. As dinâmicas de classe e de raça que são presentes no Brasil são muito visíveis aqui também, elas refletem no nosso acesso. É sempre um baque pensar que a minha experiência não é a regra, ela é exceção — é exceção que às vezes serve para reforçar a regra. Minha história não é um exemplo meritocrático, por mais que eu tenha me esforçado para estar aqui, inúmeras outras circunstâncias para além do meu controle permitiram que a minha trajetória me trouxesse até aqui, e eu vejo pouquíssimas pessoas com uma história minimamente semelhante à minha.

Em relação à sua experiência como mulher negra e imigrante, como você se vê afetada pelos aspectos de xenofobia, racismo e misoginia por aí?

Bruna: Eu me vejo afetada pela xenofobia, misoginia, racismo o tempo inteiro e em todos os lugares que eu vou, eu tenho plena noção disso. Esse racismo e xenofobia aparecem de formas muito diferentes dependendo do lugar. Eu visitei Portugal, com a minha melhor amiga — portuguesa criada no Brasil e a filha dela, que é minha afilhada — e foi uma das piores experiências da minha vida. A Ilha da Madeira, onde ela nasceu, é um lugar por si só parado no tempo e extremamente retrógrado. Durante a nossa viagem, eu estava segurando minha afilhada sozinha, porque minha amiga tinha entrado em uma loja e deixado a bebê no carrinho comigo, e eu a peguei no colo e fui passear. De repente, eu senti uma senhora portuguesa me tocando no ombro e ameaçando chamar a polícia, porque na cabeça dela eu estava furtando essa criança, porque minha amiga e a filha dela são brancas. Ela perguntou se eu era babá, me colocando, como sempre, neste lugar de servidão. Eu cheguei a ter que chamar minha amiga e criou toda uma comoção. Para mim foi uma situação extremamente vergonhosa e foi uma viagem completamente desconfortável. Isso se intensificou ainda mais  pelos olhares das pessoas que, me vendo ao lado da minha melhor amiga e sua filha, pensavam que nós éramos um casal lésbico interracial. Apesar de eu ter tido ótimas memórias e ser um lugar maravilhoso, ele foi manchado, maculado pela minha experiência com as pessoas que estavam naquele lugar.

Como é a sua vivência em relação a isso na Suíça?

Bruna: Como eu comentei, em alguns lugares isso é mais aparente do que em outros. Eu vejo aqui na Suíça uma característica de racismo e xenofobia velados, um país que se diz extremamente progressista e neutro. Eu acho que a narrativa e o imaginário suíço dependem muito dessa auto afirmação do quão maravilhoso é ser suíço, do quão progressista e neutros eles são e como aqui essas coisas não existem. Mas existe, a Suíça é um lugar extremamente racista, eu tenho amigos que são suíços negros e as experiências de pessoas negras aqui são de ostracismo social, sempre sendo colocadas em um lugar de outro e constantemente sendo lembradas de que o lugar delas não é aqui, ou que elas estão à margem da sociedade de alguma forma.

Algumas vezes isso também é mais explícito. Aqui tem um bairro altamente policiado porque ele é conhecido pela prostituição, é onde estão as trabalhadoras do sexo e pontos de venda de drogas. Andando nesse bairro, já me pararam perguntando se eu fazia programa, um número não trivial de vezes. A identificação do corpo de uma mulher negra vem sempre acompanhado desse lugar do trabalho para a servidão ou para o sexo.

Quais medidas você vê o Estado ou organizações tomando sobre isso?

Bruna: É muito difícil encontrar qualquer debate racial dentro da Suíça, as pessoas não se sentem confortáveis em falar, assim como em outros países da região que têm uma política muito semelhante. Na França, por exemplo, não se produz dados sobre raça, não existe um censo demográfico oficial e feito pelo governo, dividido por raça e gênero. Esses países seguem a lógica de que se você falar sobre isso piora o racismo. O que sabemos que não é verdade, mas alguns países europeus operam muito por essa lógica e a Suíça é um deles. Os debates são sufocados porque as pessoas não querem tocar nesse assunto, mas enquanto se recusam a encarar, essa situação vira uma bola de neve.

Uma surpresa bem positiva que eu tive aqui foi entrar em contato com alunos de outras universidades da região francófona da Suíça, organizados em uma militância negra muito forte. Ainda é pequeno, mas ter encontrado essas pessoas em coletivos negros e que se posicionam foi incrível. Ter entrado em contato com pessoas negras que cresceram aqui e ouvir as histórias delas é muito bom e muito importante para mim também.

Você acredita que o seu país de origem, no caso o Brasil, tem algum impacto nessa experiência?

Bruna: Eu tenho certeza que o país de origem é determinante na sua experiência enquanto imigrante. Em primeiro lugar porque ser imigrante tem várias camadas e intersecções, e ser mulher brasileira tem um peso — ser mulher negra brasileira tem muito peso. Os brasileiros estão em todos os lugares no mundo hoje, aqui mesmo tem muitos, então você está sempre se deparando com outros brasileiros, sempre ouvindo português. E as pessoas gostam de brasileiros, geralmente por serem pessoas mais receptivas — contanto que você não seja negro, claro. Outras nacionalidades são muito mais rechaçadas, pelo menos mais abertamente. Pessoas paquistanesas, indianas, orientais, pessoas que geralmente estão em situação de refúgio ou vindo de países do continente africano, eu acredito que tenham uma experiência completamente diferente.

Ser uma mulher brasileira tem um peso muito grande em termos de sexualidade, porque as pessoas já te colocam em um lugar de sexualização e o componente racial adiciona ainda mais uma camada de complexidade para essa questão. Eu sei que, enquanto uma mulher negra, eu estou sempre dentro da fantasia, do imaginário europeu da mulata, do carnaval, da brasileira fogosa. Enquanto brasileira, a sexualização é quase intrínseca à nossa experiência no exterior, e eu não acho que isso seja uma coisa boa.