Por Júlia Salles

Imagine você, torcedora do Atlético Mineiro, do Cruzeiro ou do América, indo a um clássico com torcida dividida (50% para cada time) no Mineirão, como foi tradição por décadas. No intervalo, decide ir ao banheiro e se depara com os sanitários femininos dentro do estádio sendo todos disponibilizados para homens, e apenas poucos banheiros químicos, no meio do corredor, sem água e sem papel, disponíveis para mulheres. 

Agora imagine você na fila para entrar no Mineirão para assistir seu time do coração, e quando vai passar pela revista se depara com filas enormes, porque só há duas entradas femininas, e o restante são masculinas. Seu pai, seu namorado, seu amigo, seu irmão, ou qualquer homem que esteja com você entra com rapidez e facilidade, já que existem muitas entradas masculinas, mas você segue na fila aguardando o seu momento, mesmo tendo chegado junto com eles.

Por fim, imagine que você decida ir sozinha comprar uma cerveja no intervalo do jogo e de repente é beijada à força por um homem que você não conhece. Mesmo falando “NÃO”, você não é respeitada e tem sua imagem sexualizada simplesmente por ser uma mulher que está frequentando um ambiente que historicamente se construiu com base na “camaradagem masculina”.

Esses são alguns exemplos de situações rotineiras que as torcedoras do Atlético, Cruzeiro e América enfrentam ao irem ao Mineirão assistir um jogo do seu time. Como você se sentiria vivenciando essas e outras situações semelhantes? Como você age presenciando momentos como esses? No Twitter do Mineirão, onde foi publicada uma mensagem em homenagem às mulheres no dia 8 de março, torcedoras dos dois clubes se posicionaram pedindo atitudes eficazes e não palavras bonitas para reduzir essa segregação no estádio, alegando uma certa contradição e hipocrisia por parte do estádio.

Relato de torcedora do Cruzeiro acerca de um episódio em que o Mineirão disponibilizou somente banheiros químicos para as mulheres da torcida rival, em dia de clássico. Foto: Reprodução/Twitter.

Relato de torcedora do Cruzeiro sobre a falta de segurança no Mineirão. Foto: Reprodução/Twitter.

Desabafo com tom de indignação de torcedora do Atlético Mineiro acerca do episódio de banheiros químicos para mulheres no dia do clássico. Foto: Reprodução/Twitter.

Relato de torcedora, sem identificação do time que torce, a respeito do número reduzido de entradas e revista feminina. Foto: Reprodução/Twitter.

Relatos de torcedoras

A reportagem entrou em contato com duas torcedoras para ouvir relatos sobre as situações enfrentadas pelas mulheres que decidem acompanhar seu time de coração em um ambiente de “camaradagem” masculina. Ana Thereza Eller, torcedora do Cruzeiro, e Catharina Tomazzi, torcedora do Atlético Mineiro, contaram algumas experiências vivenciadas e suas opiniões sobre a inclusão do público feminino no Mineirão. Confira no vídeo a seguir.

A busca por mais inclusão no Mineirão

O Mineirão, com o intuito de diminuir essas atitudes por parte dos homens, está realizando ações de conscientização em parceria com os times Atlético Mineiro, Cruzeiro e América, e conta com o apoio das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), das Secretarias de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), além do Instituto Galo. A campanha denominada “Repense: ‘Todos contra a Importunação Sexual’” foi lançada uma semana após episódios de violência ocorrerem na partida entre Atlético e Corinthians, na qual uma torcedora atleticana relatou que foi beijada à força por um homem  e uma  funcionária de um bar sofreu injúrias raciais e agressões físicas no estádio.

“Os vigilantes do estádio recebem constantemente instruções sobre como agir para casos de importunação sexual ou de qualquer tipo de discriminação. O Mineirão tem ainda um canal de denúncias por Whatsapp, com cartazes de QR Codes espalhados pelo estádio, com o intuito de agilizar o atendimento e colaborar com a apuração dos fatos junto aos órgãos de segurança”, disse a administração do Mineirão sobre as ações da campanha, enfatizando a importância das denúncias por parte das vítimas.

Nos dias de hoje, ao ir em um estádio acompanhar um jogo de futebol, situações de assédio e preconceito contra as mulheres são constantemente notadas. E em Belo Horizonte não é diferente…

No principal estádio da capital mineira, episódios de importunação sexual ou de julgamento da presença da mulher no ambiente de futebol ainda são muito relatados. No dia das mulheres deste ano (08 de março de 2022), o Mineirão divulgou uma pesquisa realizada com 200 mulheres e obteve os seguintes resultados: 97% frequentam jogos no Mineirão, 6% dessas mulheres vão sozinhas ao estádio, 55% já presenciaram ou sofreram algum ato de importunação sexual durante uma partida, 50% dos casos aconteceram nas arquibancadas, 32% dos casos aconteceram nos bares, 71% dessas mulheres que presenciaram ou vivenciaram essa situação ficaram com medo de ir ao estádio depois do ocorrido. 

78 anos de atraso e exclusão

Desde o início da popularização do futebol, no século XIX, esse esporte já era considerado como masculino, já que as mulheres eram vistas somente como templos reprodutores e como uma forma de vulgarizar esta prática (já que suas imagens eram utilizadas como uma forma de atrair os homens). O idealizador dos jogos olímpicos, Pierre de Frédy, acreditava que a mulher teria um papel de coadjuvante em relação ao esporte, considerando que mães e esposas poderiam ser boas companheiras para os homens competidores e não poderiam ser atletas.

Na década de 40, o Brasil criou um decreto-lei (3.199 de 14 de abril de 1941, art.54, na Era Vargas) que proibia a prática de algumas modalidades esportivas pelas mulheres, como o futebol, e só caiu em 1979. Com 78 anos de atraso para o público feminino no Brasil, este esporte se tornou um ambiente predominantemente masculino, tanto na prática, como para torcer, e traz consequências até hoje para as mulheres que optam por acompanhar o futebol.

Lourdes Torres, torcedora do Cruzeiro, tem 74 anos e já frequentou o Mineirão em épocas mais difíceis. Confira o relato abaixo.

“Eu sou de Recife, mas desde que me mudei para Belo Horizonte, em 1969, criei uma identificação com o Cruzeiro por causa do Tostão (ídolo da época) e comecei a torcer pelo clube, que acompanho até hoje. Meu marido não gostava muito de futebol, e a única vez que fui ao estádio, fui acompanhada por ele, porque mulheres não podiam frequentar sozinhas esses ambientes.” – afirmou.