Por João Lamêgo

Confira a reportagem em áudio

Com certeza você já passou por ele, mas depois seguiu a vida normalmente – provavelmente. Estamos falando daquele espacinho que fica entre o ônibus ou metrô que chegam a uma estação e a plataforma que os acolhe, especialmente no caso dos ônibus municipais metropolitanos, os MOVES. Se para quem não tem nenhuma deficiência já há uma ansiedade de pisar em falso, imagine essa expectativa para aqueles que têm.

Seja pela pressa para pegar um lugar, atravessar logo a porta de vidro que fecha automaticamente ou mesmo para saltar o vão, os passageiros costumam passar com rapidez para dentro do ônibus. (Foto: João Lamêgo)

Seja pela pressa para pegar um lugar, atravessar logo a porta de vidro que fecha automaticamente ou mesmo para saltar o vão, os passageiros costumam passar com rapidez para dentro do ônibus. (Foto: João Lamêgo)

A Crislândia é um exemplo vívido disso. A estudante de jornalismo da UFMG, de 30 anos, utiliza sua cadeira de rodas especializada para se locomover até a universidade e voltar para casa, que fica no Barreiro. Devido a um parto prematuro, de apenas seis meses de gestação, ela possui uma deficiência conhecida como paralisia cerebral de distribuição triplégica do tipo espásico. Os médicos que cuidaram dela contam que Crislândia teve sorte de ter sido afetada apenas nos membros inferiores. Em suma, fez muita fisioterapia e consegue até dar passos em casa, com o auxílio de um andador. Mas na rua e no transporte público a situação é diferente. 

A universitária conta que as condições dos ônibus da capital são os fatores que mais dificultam seu trajeto pela cidade, como, por exemplo, quando o elevador de um dos coletivos estraga ou agarra. Então, normalmente concluído em cerca de duas horas, já que pega dois coletivos no processo, o tempo de transporte de Crislândia fica ainda mais extenso. E isto quando ela consegue pegar os dois ônibus, que costumam ir abarrotados de gente e que, por isso, às vezes até passam direto. Atualmente, a estudante vai três vezes para a faculdade durante a semana, e nós acompanhamos um desses trajetos de retorno para casa dela, pelo menos até a estação do Move.

No caminho até lá, desde o CADII, ficou perceptível que não é exclusividade dos não-cadeirantes os famosos tropeços pela universidade. Em um momento que esbarrou com uma pedra maior pela rua, a estudante deu uma ‘’trupicada’’, e aproveitei para perguntar se eram frequentes os tropeços que ela tinha pela faculdade. Em tom descontraído, respondeu que são, mas que ”é a cadeira quem sofre (risos)”. 

Crislândia na estação do MOVE na parada da UFMG, sempre com um sorriso no rosto. (Foto: João Lamêgo)

Logo, ao chegarmos à estação, um agente abriu o portão especial para Crislândia, após ela mostrar o ‘’Passe-Livre’’. Também conhecido como Benefício Gratuidade, o cartão BHBUS Benefício Inclusão é disponibilizado pela BHTrans para que pessoas com deficiência o utilizem para pegar o transporte público de Belo Horizonte. Atualmente, de acordo com a empresa, são 30.938 pessoas que possuem alguma deficiência que utilizam o cartão na cidade. Esse número corresponde a 8,7% dos cartões benefício distribuídos – mais de 355 mil no total. 

Mas, prosseguindo, felizmente desta vez não houve problema na hora de a Crislândia entrar no ônibus, após ter sido ultrapassada a barreira do vão. Diz que sempre precisa da ajuda de terceiros, algo em comum com os outros entrevistados. Porém, o frio na barriga continua ao ter que atravessar a plataforma e entrar no ônibus: ‘’Sempre tem que ter alguém pra ajudar. Fico com receio de o motorista não esperar e eu ficar para trás’’.

Problema este que o João Ventura não passa mais

O também estudante de jornalismo, João Ventura dos Anjos, de 43 anos, atualmente pega o ônibus para voltar a sua querida Lagoa Santa ao lado da estação do Move. Mas assim como Crislândia, também precisa da colaboração de outras pessoas para conseguir chegar até em casa. O João é cego, e usa de sua bengala de cor branca para se guiar pelas ruas da capital. Ele foi perdendo a visão aos poucos, até chegar a um momento em que não enxergava mais nada. Inclusive, o trajeto de volta dele para o município natal é longo, mas por sorte, no ponto onde aguarda o coletivo sempre existem pessoas que o ajudam a conseguir entrar no ônibus, seja orientando, calculando o tempo de espera ou mesmo acenando para o motorista parar. Toda a forma de comunicação é útil. Mas é como o mesmo diz, nunca se escondeu da deficiência e sempre encarou de forma serena a cegueira, que começou na infância, por volta dos cinco anos, em um diagnóstico da escola em que estudava. Até aos trinta anos ainda enxergava bem de perto, mas depois aos trinta e três, nem vulto via mais. ‘’Tem as dificuldades, mas nunca fiquei abalado por conta disso. E estou na luta até hoje’’, afirma. Especificando mais, o João possui retinose pigmentar, que causa a degeneração da retina, região do olho responsável pelo registro de imagens visuais. É uma doença hereditária, que ao longo da vida vai se acentuando e que, em casos como o do estudante, pode provocar a cegueira total. 

Estação do MOVE na UFMG. Ponto é bastante movimentado por conta do alto trânsito dos estudantes. (Foto: João Lamêgo)

Conversando com ele durante o percurso até o ponto, com uma mão se apoiando em meu braço e a outra na bengala, um dos principais problemas levantados pelo estudante, na verdade, foi para além dos coletivos. Por conta da audição apurada, ele percebeu pelas conversas que teve com outros universitários a falta de iluminação da UFMG, ou mais precisamente – ‘’um breu’’-, durante o período da noite: ‘’Fica a impressão de que o turno noturno fica totalmente largado”, contou. Tropeços e desequilíbrios podem se tornar mais frequentes para todos os estudantes. Logo, ele também respondeu sobre o que faria se não houvesse ninguém para ajudá-lo nessa trajetória pelo campus: ‘’Teria que ir capengando mesmo’’.

Para situações como estas, há o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI) da UFMG, que faz o trabalho de coordenação para assegurar a inclusão de pessoas com deficiência à vida acadêmica. Porém, segundo o nosso entrevistado, há uma cobertura menor nos turnos da noite se comparada aos períodos matutino e vespertino. Então, por muitas vezes o João tem que se virar do jeito que a situação aparece para ele. A assessoria do NAI não respondeu aos nossos contatos, seja por email ou por ligação, mostrando-se um tanto quanto inacessível nesse aspecto. 

Mas no final das contas, aos trancos e barrancos, o João consegue chegar ao ponto dele e, posteriormente, ao destino final. Isto é, com esperteza e com a ajuda de bastante gente bem-intencionada.

Gente bem-intencionada que socorreu a Cleusa, uma vez

Voltando ao ponto principal da reportagem, se não fosse pela ação rápida de passageiros e guardas da estação no local onde havia caído, a Cleusa Coelho poderia ter se ferido ainda mais. A massoterapeuta, de 39 anos, torceu o joelho após cair em um dos diversos vãos que surgem diariamente nas estações de ônibus e metrôs de Belo Horizonte. Contextualizando, assim como o João, ela também é deficiente visual total. Logo após o acidente, ela foi prontamente encaminhada ao hospital mais próximo pelas equipes de guardas que estavam na estação, depois de ter contado com a ajuda de passageiros. O joelho melhorou, mas a lição que ficou foi a de ficar mais esperta nesses momentos. Tanto é que depois do acidente, o problema não ocorreu mais, devido ao aprendizado ganho. Hoje em dia, nesses períodos de transição de uma plataforma para outra, sempre dá uma ‘’passada mais larga’’ junto da bengala, para evitar qualquer tipo de azar. 

Inclusive, a história da massoterapeuta é muito parecida com a do estudante de jornalismo: ela perdeu a visão gradativamente, desde os dezesseis anos, até chegar ao ponto em que não enxergava mais. Diferentemente dele, todavia, ela não possui vínculos acadêmicos com a UFMG. O contato de Cleusa com a faculdade ocorre apenas de modo breve, isto é, quando a massoterapeuta precisa passar pela estação que fica em frente ao campus localizado na Pampulha. Mas é aí que surge o principal problema da história. Como a massoterapeuta precisa pegar ônibus todos os dias para ir ao trabalho, possui palavras fortes e precisas sobre a acessibilidade das estações, seja de metrô ou ônibus:

‘’Acaba que a gente conhece cada buraco (risos), dependemos das outras pessoas para nos locomovermos mesmo. Graças a Deus tem muita gente boa no mundo, porém o que eu vejo é que nas estações não há acessibilidade adequada’’.

O vão em que Cleusa caiu era parecido com este flagrado na estação UFMG. (Foto: João Lamêgo)

Continuando, Cleusa diz que só pega Uber na necessidade: no dia a dia o meio de locomoção que possui é apenas o ônibus. Mas ela ressalta que mesmo com muitas pessoas se mostrando solícitas, tudo pode acontecer: ‘’Muitas vezes falam que não viram se o ônibus já passou (quando pede para avisarem sobre o ônibus da linha dela). Algumas pessoas até mesmo vão embora. Ficamos dependendo de um terceiro’’. O relato de Cleusa demonstra puramente a falta de atenção e de cuidado do poder público com os usuários que são deficientes e que precisam pegar o transporte coletivo. E isso há de ser repensado, já que no Brasil são mais de quarenta e cinco milhões de brasileiros que possuem algum tipo de deficiência, segundo a última pesquisa realizada pelo IBGE sobre o assunto, em 2010. 

Também consultamos sobre o que a Constituição brasileira tem a informar a respeito do transporte público para pessoas com deficiência. De acordo com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de número 13.146 e em vigor desde 2015 no país, são garantidos recursos e estratégias à pessoa com deficiência, que maximizem sua autonomia e mobilidade pessoal, para uma melhor qualidade de vida. Porém, ainda há muito a ser realizado. Assim como na conversa com João Ventura, após esperarmos por nossos respectivos ônibus, eu e Crislândia fomos embora para distintos destinos, tanto de direção quanto de sentido. Mas igualmente ficou o sentimento de que o problema vai muito além do vão. 

Logo, com o intuito de entender o lado dos funcionários, um guarda da estação do Move da UFMG passou a visão dele sobre o tema. Leandro Duarte, de 27 anos, disse que é ‘’direto’’ que os problemas com o vão acontecem, mas que não há muito que ele possa fazer além de chamar o SAMU e prestar a primeira ajuda. Inclusive, informou que os próprios usuários que estão aguardando ou saindo dos ônibus são os que mais conseguem ajudar quem se acidenta pela proximidade. Dos casos que presenciou Leandro conta que as pessoas que viu se acidentarem eram idosos. Distraídos, acabam por pisar em falso e cair na vala, lesionando assim os membros inferiores. Uma perna quebrada e uma torção de pé foram apenas algumas das histórias que o guarda relatou ter presenciado, sendo ambas as fraturas ocorridas em pessoas da terceira idade.

Por fim, procurada pela nossa reportagem e ciente da adversidade em questão, a BHTrans respondeu por meio de nota que:

‘’Os motoristas são orientados a estacionar o mais próximo possível da plataforma, de forma  que dê mais facilidade no embarque para todos, em especial para as pessoas em cadeiras de rodas ou com mobilidade reduzida. Contudo, o usuário também deve ficar atento e, se necessário, ele pode solicitar o auxílio dos agentes presentes nas estações do Move, caso tenha dificuldade para realizar o embarque’’.