Por Diogo Diniz

Carlos Drummond de Andrade disse que “No Quintana’s Bar, sou assíduo cliente. É um bar que não é bar, é um bar diferente.” Mas o que é ser um bar e o que é ser um bar diferente? Para muitas pessoas, o bar é aonde elas vão para descontrair, esquecer os problemas. Para outras, é seu lugar de trabalho. Vão e depois voltam para suas casas. Mas e se “é um bar que não é bar, é um bar diferente”? 

Não há dúvida de que os belo-horizontinos fazem do bar seu mais importante passatempo: fazemos amigos, encontramos amores e comemos a deliciosa comida mineira. Aliás, há quem diga que os bares são a praia dos mineiros. É uma identidade de Belo Horizonte, algo pelo qual é conhecida no Brasil. Inclusive, a lei 9714, de 24 de Junho de 2009, declarou a cidade a capital mundial dos botecos, esses entendidos como todos os bares, restaurantes e assemelhados. 

Mas a pergunta continua: o que é um bar? E se é um bar diferente, isso muda alguma coisa nas relações de trabalho e na economia? Com essas perguntas em mente, fomos a dois estabelecimentos de Belo Horizonte que guardam uma diferença para um bar tradicional: são bares criados nas próprias casas dos donos, que abrem suas portas e seus cômodos para receber seus convidados. 

Um desses locais é o Quintal da Divina Luz, no bairro São Marcos. É lá, na sua casa, que Serginho Divina Luz, 59, músico, recebe seus convidados e amigos para rodas de samba. O Quintal surgiu em 2006. Naquela época, Serginho tinha um grupo de amigos que frequentava sua casa nas segundas-feiras. Era um um encontro cultural sem música ao vivo. Mas começaram a aparecer 100 pessoas e, para não incomodar mais os vizinhos, ele teve que interromper esses eventos. Serginho fazia também feijoadas nos finais de semana em sua residência e o sucesso fez com que ele transformasse sua casa em um barzinho. São 16 anos recebendo as pessoas aos domingos. 

Serginho Divina Luz em sua casa/bar – Foto: Diogo Diniz

Serginho já teve outros bares, mas trabalhar dentro de casa é bem diferente. Ele, que canta e compõe há 47 anos, gosta da cultura de receber pessoas em sua residência e fazer um samba. Para ele, é uma emoção diferente: quando vai a um bar não se sente tão à vontade quanto quando recebe as pessoas em sua casa. Talvez isso ocorra porque os amigos entram em  sua residência para conversar. E não é só Serginho que se envolve com o bar. Ele vive com sua filha, que cuida das mídias e das redes sociais do Quintal. 

Casa de Serginho e Quintal Divina Luz em um dia de semana – Foto: Diogo Diniz

Como vemos na foto anterior, na parte da frente do local se encontra um bar, parecido com o que vemos normalmente: cadeiras, mesas e panos. Mas observe que, ao fundo, não está simplesmente uma cozinha, mas a própria residência de Serginho Divina Luz. A foto mostra um bar vazio à frente, porém uma casa ao fundo dinâmica com suas atividades do dia a dia, mas também com seu planejamento para o próximo final de semana, quando o bar e a casa pulsam juntos e cheios de energia.

Durante a pandemia, foi tudo muito difícil, já que, com as medidas restritivas de isolamento, não pôde continuar realizando os eventos. As contas chegavam, mas ele não conseguia pagá-las. A sorte dele e das pessoas que têm empreendimentos em suas residências é que elas não pagam aluguel.

Serginho recebe convidados especialmente de outros bairros de Belo Horizonte e de outras cidades da região metropolitana, inclusive pessoas de outros estados. Elas contam a ele que saem de lá com a energia renovada. 

Joelisa Maria de Jesus, 48, ajudante de cozinha, trabalha no Quintal. Ela diz que já tinha trabalhado em casa de família, onde fazia de tudo, mas no Quintal é melhor, porque fica só na cozinha.  Mas isso não quer dizer isolamento. Ela conta que a maioria dos frequentadores vai dentro da casa, conversa com ela e que, por isso, ela conheceu muitas pessoas e fez amigos no lugar. Atualmente ela ajuda mais no marmitex que Serginho vende durante a semana. Não vai todo domingo, mas quando não há empregados suficientes, ela vai ajudá-lo. 

Outra casa que se abre para receber pessoas é o Quintal Mandaknega, localizado no bairro Santa Efigênia. O Quintal se chamava inicialmente Mandacaru Quintal, já que Stanley Albano, 28, microempreendedor, morador da casa, gostava muito de cacto. A junção da palavra “nega” tem relação com a sua identidade preta, com seu processo de enegrecimento e de aprofundamento do conhecimento de sua ancestralidade. 

Stanley Albano no Mandaknega – Foto: Diogo Diniz

Stanley começou com o quintal em março de 2019, fazendo bolo para um aniversário. Começou a vender com mais frequência bolos e pães, depois de sair de uma padaria. Por lá, trabalhava direto e não conseguia manter uma vida social e isso o deixava doente e chateado. Além disso, teve que se mudar para onde mora hoje. A ideia inicial era fazer algo relacionado a um café, mas acabou se tornando mais próximo de um bar. 


Pastel de Angu do Mandaknega – Foto: Diogo Diniz 

 O pastel de angu tornou-se um dos principais aperitivos do Quintal. Mas quando ambos começaram a ficar conhecidos, veio a pandemia.

Ele teve que começar a fazer comida para entrega. Nesse período, plantou muitas plantas no Quintal. Foi uma forma que ele encontrou de lidar com o isolamento e de não surtar. 

Trabalhar em casa para Stanley é ótimo. O bar fecha e ele já está em casa, além de poder adaptar seus horários. Por outro lado, pode ser tentador estar com sua cama tão próxima. 

Além de Stanley, na casa, também mora Raul Oliveira, 29, videomaker. Ele conta que os dois reservaram apenas um cômodo para uso privado, enquanto os outros espaços são utilizados no bar. Aliás, ele diz que, com o tempo, eles aprenderam a como limitar a privacidade da casa e se deveriam abrir mais espaços no ambiente. Um outro quarto foi transformado em sala e permitiu que fosse um lugar para uso dos convidados, especialmente se chover.

Raul Oliveira

Foto: Diogo Diniz

Cômodo que era privado e se tornou uma sala para os convidados – Fotos: Diogo Diniz

A casa funciona também como uma galeria de arte, na qual podemos ver os  trabalhos deles e de outras pessoas. “É uma junção de gastronomia, cultura e bar”, segundo Stanley.  Objetos são retirados de caçamba, restaurados e colocados para decorar a casa. A casa recebe também contribuições de amigos, como quadros, gaiolas e outros itens. Stanley diz que quer manter a simplicidade da casa.

Trabalhos artísticos nas paredes do Mandaknega – Fotos: Diogo DIniz

Raul acrescenta que nada é planejado. Ele diz que é “aquela decoração do fluxo”, e que “é gostoso ver as pessoas gostando também”. Stanley conta que as pessoas falam que “abriu um portal”, “parece que está entrando na casa dos outros”, “parece que estou bebendo no fundo da casa da minha avó”. 

Os hábitos na casa não mudaram muito, já que o bar funciona três dias por semana: sexta, sábado e domingo. Por isso, eles conseguem fazer outras atividades, como estudar e, inclusive, outros trabalhos.

O fato de não haver placas indicando o Mandaknega faz com que o público seja selecionado, muitas vezes por indicação de amigos. Stanley diz que “isso dá um conforto e uma tranquilidade para poder receber”. 

A mãe e a irmã de Stanley ajudam no funcionamento do local. Sua mãe, Rosilene Oliveira, 51, cozinheira e salgadeira, conta que gosta de trabalhar com os filhos e que os colegas de trabalho são todos bons. As pessoas entram na cozinha e a abraçam. Ela gosta. Raul conta que é uma ótima ajuda da irmã e da mãe de Stanley. Durante a pandemia, elas moravam na casa da frente e já demonstravam o potencial de trabalhar juntos na cozinha. Assim, no Mandaknega, há uma mistura de vários elementos: familiares, de residência  e de trabalho.

Rosilene Oliveira prepara um aperitivo – Foto: Diogo Diniz

Outra questão diferente do Quintal é o relacionamento com os empregados. A relação estabelecida é de amizade e os empregados são estimulados a se sentirem à vontade, sem se esquecerem do serviço, claro. Essa liberdade se contrapõe à experiência de Stanley em seus trabalhos, já que foi muito abusado na relação com os empregadores. Ele pensa que a pessoa que vai entrar na sua casa e trabalhar tem que ter uma relação mais próxima, já que ela está doando seu tempo e, ao se sentir bem, o trabalho será melhor realizado. 

Vemos nessa questão e em outros pontos abordados que há uma diferente forma de organização econômica no Quintal de Divina Luz e no Mandaknega, que têm consequências na forma como se dão as relações trabalhistas. Essas práticas econômicas e sociais estão relacionadas com a economia popular e solidária, ou seja, são práticas que buscam uma alternativa para a precarização do trabalho e para o desemprego.

A economia popular não é algo secundário no Brasil. Em 2010, representava 20% da força de trabalho, segundo Sibelle Diniz, professora adjunta do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG e coordenadora do Colmeia – grupo de estudos, pesquisa e extensão em economia popular e solidária da Face/UFMG

Uma característica da economia popular é, de acordo com a professora, o fato de ter como objetivo a reprodução da vida dos participantes e não a acumulação de lucro. Outro ponto é que a racionalidade na produção do trabalho não passa pela exploração e acumulação. Vemos isso na forma como se dão as relações de trabalho. No Mandaknega, busca-se criar uma relação diferente entre empregador e empregados, numa forma mais horizontal de organização fundada na reciprocidade e em um ambiente de maior confiança e solidariedade. 

Além disso, na economia popular há uma organização em torno de uma unidade doméstica não necessariamente familiar, mas com vínculo próximo. Tanto no Mandaknega como no Divina Luz, há uma mistura entre trabalho, família e casa. 

Negócios como casas que se tornam bares são criados, muitas vezes, a partir de uma racionalidade distinta da racionalidade empresarial tradicional. São empreendimentos nos quais os meios de produção se confundem com os meios de reprodução. A cozinha da casa é a cozinha do bar, ou seja, os mesmos itens que são utilizados na cozinha do dia a dia são usados para a produção nos bares. 

Essa nova forma de organização se reflete na forma como os frequentadores se apropriam desses lugares. Larissa Fernandes, 25, freelancer e frequentadora do Mandaknega, diz que o mais interessante da casa é que, apesar de ter virado um bar, as pessoas conseguem se sentir à vontade, mesmo sendo um lugar comercial. Ela conta que se sente desconfortável em outros bares e, mesmo em estabelecimentos nos quais os quintais estão abertos, ela não sente a mesma comodidade. 

Vanessa Rafaela, 28, vendedora, prima de Stanley, diz que já esteve no Mandaknega duas vezes e que “gostou demais, especialmente do atendimento e do pastel de angu”. Ela afirma que “é um lugar que você fica à vontade”, e que “dá para ir para descansar, fica em contato com a natureza” e o fato de ser uma casa “traz esse aconchego, você de fato se sente em casa”. 

Vimos com o Quintal da Divina Luz e com o Mandaknega que dizer o que é um bar não é tão fácil. Não é simplesmente um lugar público aonde vamos, tanto consumidores como empregados e empregadores. Pode ser uma mistura entre o público e o privado, o trabalho e a própria casa ou entre família e trabalho. Bom, pelo menos já sabemos que não só o Quintana’s Bar é um bar que não é bar, é um bar diferente. Faça como Carlos Drummond de Andrade e ache um bar que não é bar, um bar diferente.