Muitos anos se passaram desde a reforma do Mineirão para a disputa da Copa do Mundo de 2014. A pergunta que ainda fica é: o que vale mais, valorizar a paixão do torcedor ou se estabelecer como point cultural de Belo Horizonte?

Por Daniel Mendes, Diego Balduino, Gabriela Araújo, Leonardo Alves e Mariana Carolina*

Nos últimos meses o Mineirão foi tema de várias matérias jornalísticas que abordavam um aspecto extracampo: as péssimas condições do gramado tendo em vista o grande número de shows sediados dentro do estádio. A arenização, termo derivado do campo da geografia, nos indica um processo natural responsável por formar bancos de areia no solo. Entretanto, afastando-se desse contexto geográfico, a arenização diz sobre um procedimento no qual os estádios de futebol se adequam a padrões e desempenham funções para além do futebol. As arenas multiuso, que estão inseridas no processo de arenização, foram disseminadas pela Copa do Mundo, sediada no Brasil em 2014, e dizem também sobre uma elitização da forma como se consome o esporte jogado com os pés.

Foto: Bruno Haddad / Cruzeiro (Imagem de capa)

Segundo o pesquisador Irlan Simões, autor do livro “Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno”, a arenização é uma imposição de um conceito de consumo esportivo. As cadeiras, que tomam os lugares dos bancos de concreto, seriam moldadores das diferentes e ruidosas formas de se torcer. Trazendo para contexto mineiro, quando se fala de arenização e Mineirão, logo pensamos sobre como o estádio se tornou multiuso de tal maneira que hoje é mais casa de shows do que de jogos, diferente de seu foco inicial quando foi inaugurado, em 1965, para suprir uma carência de um palco esportivo apropriado em terras mineiras. 

Foto do antigo Mineirão.

Após a sua criação, a Lei nº 3.410, de 1965 estabeleceu a criação da ADEMG, uma autarquia estadual com autonomia administrativa e financeira sobre o estádio. Já no ano de 2010, a Secretaria de Planejamento do Estado de Minas Gerais encampou as funções da ADEMG. Além de administrar tanto o Estádio Governador Magalhães Pinto e o Estádio Jornalista Felipe Drumond (Mineirinho), o órgão também ficou responsável por colaborar, promover e incentivar o uso das dependências para atividades esportivas, artísticas, culturais e de lazer. 

Segundo o pesquisador Diego Jardim, em sua dissertação, o Estado não guardava condições operacionais e técnicas para ficar à frente das obras de reforma e depois, de gerenciar o estádio. Logo, em 2010, o então governador Antônio Anastasia alegando falta de recursos, tornou público o processo licitatório nº 2/2010, que ditava sobre a exploração, por meio de concessão administrativa, de operação, reforma e adequação do Mineirão. 

Para os pesquisadores Tharcio Elizio e Nayara Salgado, o processo realizado no Mineirão não seguiu as leis sobre parcerias público-privadas (PPP), com anuência do Conselho Gestor de Parcerias Público-Privadas, órgão ligado ao governo do Estado responsável pela averiguação do cumprimento dessas parcerias. 

Constituída pelas construtoras Construcap, Engesa e HAP Engenharia, o consórcio Minas Arena foi o único participante do processo licitatório e, entre 2010 e 2012, realizou as reformas do Gigante da Pampulha e tornou-se responsável pela administração do estádio. O Estado não se afastou totalmente da gestão, tendo vários representantes ligados ao Mineirão. 

No montante geral, segundo matérias publicadas pelos jornais SuperEsportes, R7 e Época, a obra ficou orçada no total de R$665,7 milhões (R$1,8 bilhão em valores atualizados), onde R$400 milhões foram financiados pelo Governo Federal por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No acordo, o estado de Minas Gerais irá pagar por 25 anos pelas obras de reforma realizadas no Mineirão. O contrato firmado determina que a administração do estádio fica por conta da Minas Arena por 27 anos, ou seja, até 2037, com chance de revogação no prazo máximo de até 35 anos. 

A arena multiuso 

A Minas Arena chegou reinventando o espaço para transformar o Mineirão em um local que, segundo eles, fosse capaz de sediar pequenas reuniões até megaeventos, posicionando Belo Horizonte no circuito de grandes espetáculos. A concessionária guarda o objetivo de explorar comercialmente o Gigante da Pampulha, que sempre recebeu eventos, mas que antes nunca travou uma briga com os clubes como tem sido agora. 

Para se tornar uma arena multiuso, o Mineirão passou por grandes mudanças e ganhou um espaço de convivência no antigo estacionamento. A esplanada, onde o piso é apropriado também para prática de esportes, foi criada para receber shows e hoje se vê mais como uma coadjuvante em toda história. Além do mais, várias comodidades, como banheiros, lojas, bebedouros, foram melhorados para requalificar um espaço público e colocá-lo em posição de ambiente diversificado. 

Neste cenário de arena multiuso, podemos pensar o que é mais lucrativo para o Mineirão: sediar jogos de futebol ou receber shows dos mais diferentes ritmos? Segundo o diretor comercial da Minas Arena, Samuel Lloyd, em uma conferência de imprensa realizada no mês de janeiro deste ano, o Mineirão recebe mais lucros com os jogos do que com os shows. 

A própria Minas Arena informou que no ano de 2022, o estádio foi sede de 55 jogos de futebol, representando 80% do faturamento, enquanto os 156 eventos representaram apenas 20%. Uma das justificativas para tantos eventos culturais seria a falta de contrato com o Cruzeiro e Atlético, os principais clientes, que estavam negociando os jogos de maneira  isolada. Assim, com a falta de jogos programados na agenda, a concessionária viu a necessidade de buscar eventos não esportivos. Em nota enviada à esta reportagem, a própria assessoria de comunicação do Mineirão evidencia este ponto.

“A agenda de shows vem para suprir a capacidade ociosa do estádio. A questão é que, diferentemente do futebol, a agenda de eventos tem uma previsibilidade bem maior. Falando especificamente de 2023, é importante ressaltar que até o fim do primeiro trimestre, não havia reservas de datas de jogos no Mineirão por parte dos clubes. O Cruzeiro tinha assinado acordo de fidelidade com a Arena Independência e o Atlético aguardava a inauguração de sua arena, ainda sem data para acontecer.” 

A equipe de comunicação do estádio deixa claro que a quantidade de eventos sediados no gramado aumentou neste ano justamente porque os times informaram que não iriam jogar no Mineirão. Posteriormente, o Atlético tomou conhecimento do atraso na conclusão da sua Arena MRV e o Cruzeiro firmou acordo para voltar a jogar no estádio no final do mês de abril. O planejamento tardio tem trazido problemas tanto para manutenção do gramado quanto para readequação da agenda.

“Pasto” ou “tapete”?

O cenário de shows, por vezes, não é tanto o grande problema apontado pelos torcedores e clubes. A grande reclamação se dá nas condições em que o estádio é entregue para os confrontos futebolísticos. Se espera um verdadeiro “tapete” e a realidade é outra completamente diferente, um verdadeiro “pasto”. 

Maria Clara Valle, torcedora do Cruzeiro, é uma frequentadora assídua nos jogos do time do coração e, principalmente após a reforma, passou a estar bem presente no Mineirão. Ela também costuma ir em shows no estádio, aproximadamente três vezes ao ano, e acredita que hoje o local não prioriza as partidas de futebol. “A reforma teve o intuito de trazer mais conforto e modernidade para o torcedor, mas, por outro lado, é perceptível que, cada dia mais, o futebol não é prioridade do estádio. Percebo que o número de shows aumentou consideravelmente, o que não é um problema, desde que seja no local certo e não entre em conflito com as datas dos jogos”, contou.

A torcedora acredita que não é somente o campo que tem sido um grande empecilho para a qualidade dos confrontos esportivos. “Além da situação deplorável do gramado, que inclusive vem ganhando repercussão nacional, o espaço de uso dos torcedores deixa muito a desejar. Cadeiras quebradas e extremamente sujas, banheiros sujos, vidros quebrados, são alguns pontos que chamam a minha atenção quando vou ao estádio hoje. Tudo isso é inadmissível, afinal, o torcedor paga um ingresso caro, gasta com bebida, comida e deslocamento para assistir um jogo em um gramado ruim e no estádio em condições piores”, afirmou. 

Questionados sobre os cuidados realizados com o gramado, a comunicação do Mineirão esclareceu que existem várias técnicas de recuperação de gramado que são programadas ao longo do ano de acordo com as necessidades e da época. “No dia a dia, o trabalho de conservação e manutenção conta com a aplicação de defensivos agrícolas, hormônios vegetais, descompactação de solo, cortes e irrigação.” Ainda apontam que no inverno acontece o chamado overseeding, que consiste na aplicação de sementes do tipo ryegrass; “(…) Essa grama, associada à grama bermuda celebration, melhora o aspecto visual e a densidade do campo nessa época de temperaturas mais baixas.” 

O Mineirão conta que os palcos e estruturas são montados na grama sintética atrás dos gols, em exceção de casos avaliados de maneira minuciosa. Ainda esclarecem que o gramado é protegido pela tecnologia easyfloor, que envolve um sistema de distribuição de carga que permite que a grama possa realizar a troca de umidade e a fotossíntese. Nos eventos, a proteção é colocada e só é retirada após o término das atividades. Além do mais, segundo a assessoria, há a aplicação de produtos de correção, como adubos e fertilizantes, e a descompactação do solo. 

Entretanto, os cuidados detalhadamente expostos não parecem ser suficientes e não é de forma errônea que o gramado ganha cada dia mais os noticiários esportivos. No mês de junho, o Governo do Estado, que pelo modelo de contrato estabelecido ainda tem “poder” em certos níveis com relação ao estádio, notificou a Minas Arena através da Secretaria de Mobilidade e Infraestrutura, em decorrência das condições do gramado. Como resposta, a Minas Arena fez o envio de um laudo que atestava as boas condições do campo. O Governo Estadual vai buscar realizar uma avaliação própria e, se constar a péssima condição, pode até penalizar financeiramente o consórcio. 

Neste ano, o Atlético foi multado pela Conmebol, após a partida contra o Millonarios, por conta da condição do campo de jogo. De acordo com a Itatiaia, o valor da multa chegou aproximadamente aos R$49 mil. Um trecho do manual de clubes de 2023 do organizador da competição, relata que “A CONMEBOL se reserva o direito de realizar uma retenção econômica em relação aos direitos de participação sobre os clubes cujos estádios não disponham de grama, drenagem e irrigação que atendam aos requisitos exigidos”. Além disso, o time também foi proibido pela entidade esportiva de disputar um dos seus jogos na Libertadores, pelo mesmo motivo: o estado do gramado. 

Atlético e Cruzeiro já se posicionaram de forma veemente contra as condições do gramado desde o ano passado e também a respeito da preferência da Minas Arena pelos eventos. Em 10 de julho de 2022, o Atlético publicou um tweet reclamando das condições do gramado. Mais de um ano depois e não há, ao menos, nenhum sinal de melhora.

Postagem feita pelo Atlético criticando a situação do gramado. Disponível em: https://twitter.com/Atletico/status/1546232901339172867 

As promessas 

Segundo nota fornecida à esta reportagem, o Mineirão tem realizado um movimento para readequar a agenda de eventos, já com datas marcadas, com os jogos de futebol; “essa readequação inclui cancelamentos, mudança de data ou de local dos eventos.” A nova organização também implica na mudança de shows que eram programados para ganhar o espaço do gramado. Show e estádios de futebol não travam um relacionamento recente. Em seu próprio site oficial, o Mineirão se define como o maior palco do futebol mineiro. “O Mineirão também se destaca como grande cenário para os maiores shows que Belo Horizonte já recebeu. Assim como gênios da bola desfilaram talento pelo tapete verde do da Pampulha, grandes astros dos mais diversos estilos musicais emocionaram as plateias em shows inesquecíveis.” 

A assessoria aponta que o processo para que o Mineirão se “transformasse” em um estádio multiuso, foi fruto de um aprendizado que se deu ao longo de anos de operação. Para explicar a sua condição dupla, a comunicação informa que o estádio conta com diferentes espaços e capacidade para receber públicos de tamanhos diversos. Além do mais, apontam que o Mineirão fica bem localizado, ligado por duas grandes avenidas, e que conta com portões largos, rotas de fuga, facilidade para montagem de palcos, o tornando o “queridinho” dos produtores.

“Belo Horizonte é uma cidade festeira, que sempre careceu de grandes eventos e, agora, por causa do Mineirão, virou rota dos principais shows internacionais que vêm ao país e de grandes festivais, para públicos de 40 mil, 50 mil, 60 mil pessoas.” De acordo com a assessoria de comunicação, um estudo do Ipead/UFMG, realizado no ano de 2019, aponta que o Mineirão ajudou a injetar R$662 milhões na economia do Estado, “a cada R$1 gasto dentro do estádio, R$3,23 são gastos fora do contexto do Mineirão. 

Para Maria Luiza Precioso há algumas diferenças nas estruturas montadas para os shows e a operação que acontece durante os jogos de futebol no Mineirão. “Acho que a estrutura dos shows, como é algo mais móvel, é mais personalizada para o show, como bares, camarotes e portais de entrada. Já a do jogo, é sempre a mesma coisa, estamos habituados, sabemos exatamente onde ficarão os bares, banheiros e camarotes”. Quanto às semelhanças, a torcedora alvinegra não exita e afirma que a desorganização e o caos para se chegar ao estádio, seja nos dias de jogos ou shows, é bem parecida e ruim. “A parte semelhante é o caos para acessar, no show é menor, mas também tem muitos carros, ônibus, pessoas, e o trânsito é intenso”, explicou. Outro assunto bastante pertinente são os aspectos das condições de segurança para esses eventos, sejam eles jogos ou shows.

De acordo com ela, é possível perceber que nos jogos de futebol o esquema de amparo é mais reforçado do que nos shows. “Em um jogo de futebol a gente geralmente tem staff, seguranças terceirizados, bombeiros, ambulância, PM e batalhão de choque. Isso é o padrão de qualquer jogo de futebol masculino. Nos outros eventos que eu já fui, tinha somente um posto de bombeiros e de polícia, eles andavam no meio da gente, como acontece em jogos”.


Foto: Bruno Haddad / Cruzeiro

Seguindo à risca o contrato firmado pela parceria público-privada, a projeção era que o Mineirão receberia cerca de quatro shows por ano e, durante o calendário anual, precisaria ser palco de 66 partidas de futebol. Atualmente, a agenda do Gigante da Pampulha, se encontra sem atualizações. No entanto, pode-se afirmar com toda certeza que, neste ano, já foi casa de muito mais shows, deixando, consequentemente, o futebol de escanteio. Por estar em processo de readequação da agenda, que compreende uma organização de shows e jogos, a equipe de comunicação do Mineirão preferiu não informar o total de eventos que já aconteceram e ainda vão acontecer.

Para averiguação de irregularidades, ilegalidades e fraudes no contrato firmado entre o Estado e a Minas Arena, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais realizou uma audiência pública no mês de abril, que contou com a presença de membros do Governo, do Ministério Público, da Federação Mineira de Futebol, dos dirigentes do Cruzeiro, Atlético e América e os presidentes das SAFs. Ainda no mesmo mês, circulou na ALMG um requerimento para instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com o mesmo propósito, porém não houve prosseguimento para a instauração da Comissão. 

Na reunião extraordinária do dia 24 de maio, o deputado João Vítor Xavier (Cidadania) afirmou que acionaria o Ministério Público e também o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, para que fosse cumprido o “contrato de concessão com a Minas Arena para exploração do Mineirão”. Além disso, o parlamentar ainda afirmou que a falta qualidade do campo de jogo atrelado à falta de priorização dos jogos no estádio, para a realização de shows, contratualmente, pode acarretar em multa no valor de R$4,7 milhões.

A atual administração da Minas Arena deixa muito a desejar quando se pensa na importância que o Mineirão representa para todos os mineiros. Seja palco futebolístico ou de shows musicais, o Gigante da Pampulha é um patrimônio de Minas Gerais que deve ser preservado. São ainda mais alguns anos tendo a Minas Arena à frente da gestão do estádio mineiro. O que o Mineirão pode esperar para as próximas décadas? 

A própria concessionária afirma, diversas vezes, que o lucro é proveniente mais dos jogos do que dos shows. Por outro lado, o que deixam transparecer, é falta de prioridade para os confrontos esportivos, o que ficou bastante evidente nesse ano, uma vez que o gramado, por mais que aponte a respeito dos cuidados, não se encontra em seus dias de glória e tem feito com que os clubes optem por jogar em outros estádios, como o Independência. Para além da preservação desse bem público, que tem como seu fim primordial a realização de jogos de futebol, se faz necessário um planejamento mútuo entre clubes e a administradora para minimizar esses conflitos de interesses. Resta esperar se o Mineirão ainda reverberará no meio do processo de arenização.


*Reportagem produzida no “Laboratório em Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismo e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira, doutorando do PPGCOM/UFMG